A triagem selectiva das palavras
leva-nos ao início acidental do precipício
as perguntas postas à natureza sábia
não dariam sequer para entendê-la
o ócio no ofício, o consórcio do bulício
da cidade, chaminés, toxinas, fumo
o clangor fleumático do fervor metálico
o labor langoroso da cratera do vulcão
a nova ordem mundial do fogo
a noite incendeia-se de lava e enxofre
a pirotecnia do amor vulcânico
oposto ao matrimónio olímpico
casas novas erguidas no solstício
em ruínas devastadas no equinócio.
as locomotivas incendiárias a epiderme
queimada dos campos, a terra quebradiça
enviai-nos novos males diariamente
como a dieta perigosa da calota polar
está a dar que falar de polo a polo
entre especialistas sem especialidade
cada vez há mais Confúcios gafanhotos
com as patas em cima da sabedoria
confundem-nos confundem-se confusos
confuciamente
mirmidões, fazendo pisca, elétricos
na peregrinação diária de alumínio
rumo ao quotidiano com cheiro tóxico
morrendo sem ter-se renascido.
ardemos como madeira, carbonizamos
gargalhadas que não queríamos dar
as mãos que apertamos pertencem
aos pescoços que gostaríamos apertá-los
temos sempre as navalhas prontas nos bolsos
o bom dia anunciado soando a desafio
a recepcionista vê-nos pelo periscópio
interior mais pontente que o imaginário
ela sabe que eu sou daqui mas não
sabe que não estou aqui, ela desconfia
que um dia irei falar-lhe de poemas
que fiz e desfaz o olhar, virando costas
nunca seremos o que desejámos, conheço
duas pessoas que foram o que desejaram
precisei mascarar-me de sonho realizado
sem ter realizado sonhos de qualidade.
a realização de sonhos é um diálogo
com buracos negros bem nutridos
de planetas gordos prontos a comer
num curtíssimo espaço de tempo
pegamos na foice, a colheita inicia-se
nunca colhemos o nosso trigo
o sonho não comanda a vida pelo menos
comigo, confesso, o mundo foi mais forte
muro alto, vedado, com vigilância apertada
para lá entrar é preciso saber de física
quântica dos leopardos na época
de acasalarem cem vezes ao dia
há bons cartazes publicitários com
membros, vendem-se bem, só lhes falta
dizerem-nos o preço no banco de trás
enquanto nos roubam de frente.
inveja é isto, admito, sinto inveja
deste piriquito que canta perfeitamente
da colina que se acende quando o sol
o fustiga, a serpente desenhada no rio
a migração dos pássaros, mesmo os ninhos
de milagrosa engenharia, lama a lama
palavra por palavra, sonho a sonho
jogo a jogo, peça a peça, passo a passo
pulso a pulso, asa a asa, dia a dia
voo a voo, espaço a espaço
lanço a lanço, sem gruas e guindastes
sem arquitectura ou humana mão
sábias constroem poemas mais perfeitos
que os meus, os meus são interrompidos
pelo depósito da gasolina, o chicote do
relógio no pulso avariado de precisão suiça
meu pai bem me avisou quando me dizia
"dança-se consoante a música", mas isto
é para quem não gosta de música, ou para
é para quem à noite chega uma sopa quente
segundo por segundo poderia construir
avenidas largas cheias de lojas e luzes
Ou parques cujas sebes conseguem figuras
geométricas de mágicos enigmas
estas dores de cabeça começaram
mais ou menos quando fui atirado ao caldeirão
e percebi que me arrancariam a flor do peito
que me recusava oferecer com fogo e fúria
de imediato vieram coisas contra mim
dissabores, desamores, intrigas, casamentos
traições, revelações bizarras e no absurdo
erguia uma cidade de poemas abertos
sem cercas sanitárias, sem canhões de água
sem corações bélicos e vampíricos
sem espíritos licantrópicos, sem
bailes de gala de gárgulas de gula
e no fim pedirei contas a mim póprio
voltarei ouvir a voz aguda e cristalina
da minha tia que me dizia para pensar
na noite plena em voos de naves da Galáctica
imagens desfeitas em fumo e ar
abóbodas estelares com projector de imagens
tempestades, lembro-me que o raio caiu
à beira do meu pai, num lamento elétrico
porque isto de existir é contabilidade
faz-se o balanço definitivo e saberemos
onde tirámos proveito, onde aproveitámos
onde se gastou e perdeu tempo, faz-se o somatório
onde a vida nos mordera, degastara, e conseguira
enjaular-nos no circo como animais exóticos
para haver vida é preciso sangue
derramado no relatório de contas