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POESIA ÀS ESCONDIDAS

Poemas escritos por António Só

Relatório de contas

Setembro 22, 2021

justiça.jpg


A triagem selectiva das palavras

leva-nos ao início acidental do precipício
as perguntas postas à natureza sábia
não dariam sequer para entendê-la

o ócio no ofício, o consórcio do bulício
da cidade, chaminés, toxinas, fumo
o clangor fleumático do fervor metálico
o labor langoroso da cratera do vulcão

a nova ordem mundial do fogo
a noite incendeia-se de lava e enxofre
a pirotecnia do amor vulcânico
oposto ao matrimónio olímpico

casas novas erguidas no solstício
em ruínas devastadas no equinócio.
as locomotivas incendiárias a epiderme
queimada dos campos, a terra quebradiça

enviai-nos novos males diariamente
como a dieta perigosa da calota polar
está a dar que falar de polo a polo
entre especialistas sem especialidade

cada vez há mais Confúcios gafanhotos
com as patas em cima da sabedoria
confundem-nos confundem-se confusos
confuciamente

mirmidões, fazendo pisca, elétricos
na peregrinação diária de alumínio
rumo ao quotidiano com cheiro tóxico
morrendo sem ter-se renascido.

ardemos como madeira, carbonizamos
gargalhadas que não queríamos dar
as mãos que apertamos pertencem
aos pescoços que gostaríamos apertá-los

temos sempre as navalhas prontas nos bolsos
o bom dia anunciado soando a desafio
a recepcionista vê-nos pelo periscópio
interior mais pontente que o imaginário

ela sabe que eu sou daqui mas não
sabe que não estou aqui, ela desconfia
que um dia irei falar-lhe de poemas
que fiz e desfaz o olhar, virando costas

nunca seremos o que desejámos, conheço
duas pessoas que foram o que desejaram
precisei mascarar-me de sonho realizado
sem ter realizado sonhos de qualidade.

a realização de sonhos é um diálogo
com buracos negros bem nutridos
de planetas gordos prontos a comer
num curtíssimo espaço de tempo

pegamos na foice, a colheita inicia-se
nunca colhemos o nosso trigo
o sonho não comanda a vida pelo menos
comigo, confesso, o mundo foi mais forte

muro alto, vedado, com vigilância apertada
para lá entrar é preciso saber de física
quântica dos leopardos na época
de acasalarem cem vezes ao dia

há bons cartazes publicitários com
membros, vendem-se bem, só lhes falta
dizerem-nos o preço no banco de trás
enquanto nos roubam de frente.

inveja é isto, admito, sinto inveja
deste piriquito que canta perfeitamente
da colina que se acende quando o sol
o fustiga, a serpente desenhada no rio

a migração dos pássaros, mesmo os ninhos
de milagrosa engenharia, lama a lama
palavra por palavra, sonho a sonho
jogo a jogo, peça a peça, passo a passo

pulso a pulso, asa a asa, dia a dia
voo a voo, espaço a espaço
lanço a lanço, sem gruas e guindastes
sem arquitectura ou humana mão

sábias constroem poemas mais perfeitos
que os meus, os meus são interrompidos
pelo depósito da gasolina, o chicote do
relógio no pulso avariado de precisão suiça

meu pai bem me avisou quando me dizia
"dança-se consoante a música", mas isto
é para quem não gosta de música, ou para
é para quem à noite chega uma sopa quente

segundo por segundo poderia construir
avenidas largas cheias de lojas e luzes
Ou parques cujas sebes conseguem figuras
geométricas de mágicos enigmas

estas dores de cabeça começaram
mais ou menos quando fui atirado ao caldeirão
e percebi que me arrancariam a flor do peito
que me recusava oferecer com fogo e fúria

de imediato vieram coisas contra mim
dissabores, desamores, intrigas, casamentos
traições, revelações bizarras e no absurdo
erguia uma cidade de poemas abertos

sem cercas sanitárias, sem canhões de água
sem corações bélicos e vampíricos
sem espíritos licantrópicos, sem
bailes de gala de gárgulas de gula

e no fim pedirei contas a mim póprio
voltarei ouvir a voz aguda e cristalina
da minha tia que me dizia para pensar
na noite plena em voos de naves da Galáctica

imagens desfeitas em fumo e ar
abóbodas estelares com projector de imagens
tempestades, lembro-me que o raio caiu
à beira do meu pai, num lamento elétrico

porque isto de existir é contabilidade
faz-se o balanço definitivo e saberemos
onde tirámos proveito, onde aproveitámos
onde se gastou e perdeu tempo, faz-se o somatório

onde a vida nos mordera, degastara, e conseguira
enjaular-nos no circo como animais exóticos
para haver vida é preciso sangue
derramado no relatório de contas

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