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POESIA ÀS ESCONDIDAS

Poemas escritos por António Só

O ciclo do medo

Agosto 11, 2021

Ando a coleccionar Apocalipses e Armagedões
cromos de abomináveis cavaleiros míticos
vulcões de tamanhos s, l e xl
a ver se consigo morrer antes do tempo

conspiro contra conspiradores
com os que negam conspirações também
sobra-me tempo e querer vivê-lo
é viabilizar o medo incoculando-o.

o medo genuíno é mendigo de andrajos
famélico sujo a bater-nos à porta
ultimamente saio pelas porta dos fundos
o medo assemelha-se às seguradoras

quando era miúdo sentia medo do meu pai
sentia medo da minha mãe, da minha avó
da professora da escola de miúdos terríveis
das auxiliares com sangue nos olhos

medo de beber água fria, comer laranjas
à noite, dizer mal de Deus, comer moscas
andar nu na estrada, vai-se por um caminho
não poder sequer rebentar os miolos à vontade

desde que nasci lembro-me que um dia

experimentei não ter medo, foi um erro
tremia por respirar livremente desconfiei
e senti medo, logo sou cidadão do mundo

proíbe-se tudo, andar a pé, de carro
avião, comboio, eléctrico, de mulher
de minotauros minorcas em lojas
com acrílico aqui acrílico acolá

preciso de certificado da minha existência
pulmonar, da doença, do pânico, do susto
fui multado por amigos por fugir à seringa
esquartejado em pedaços nas opiniões.

deve ser bom ir à Lua e ter dinheiro para
girar o mundo inteiro com as mãos sujas
invocar-se o vómito, a matéria imprevisível
ser de carne osso, votivo ao medo.

Não queria dizê-lo, mas repito: mandem-me
doses gordas de medo até que Fobos trema
fiz uma lista de tragédias gregas que podiam
acontecer-me no corpo e cheguei ao infinito

há especialistas do mundo que parecem putas
nas esquinas a pedirem-nos lume e medo
não me disseram quando nasci que devia ter
medo, medo, medo, medo subsequencial

não me explicaram que os andaimes da terra
iriam ruir-nos em cima como sempre fizeram
os mares subirão de tom como sempre fizeram
os céus irão engolir-nos como sempre engoliram

um índio dos antigos quando encosta o ouvido
à terra, não é o trotar de cavalos que escuta
mas sons metálicos que nos furam os tímpanos
rios caudalosos a metamorfosearem-se em ouro

há países fumadores que nos dilatam as veias
entopem-nos as artérias, envenenam os ares
eu que não fumo obrigam-me a deixar de fumar
eles continuarão a fumar cachimbos gigantescos

o vírus, a pandemia, o horror, a calamidade
a zaragatoa, a pandemia, o horror, o cata-
clismo, o autoclismo, o pânico, o plástico
o vírus, a pandemia, o horror, a jaula

a última vaga pior que a primeira o vírus
multiplicado por línguas de sangue cíclicas
da chuva, a nossa existência a crédito
a verdade ser mentira, no fundo, o medo

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