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POESIA ÀS ESCONDIDAS

Poemas escritos por António Só

A Cidade (poema não corrigido)

Janeiro 29, 2009

Encurta-me a distância, ó cidade cinzenta em que vivo,

Sobre o que sinto, sobre o que exprimo, sobre o que vejo

Nos  altos prédios, novas Argos, de cem olhos de vidro molhados

Depósitos repletos de gente cheios de intriga,

De lágrimas escondidas, suor, ócio… uma vida,

Inteira a repetir-se no vago cruzamento de olhos,

De rostos, esculpidos com arte por cinzel de mestre,

Do invisível, do inexprimível, do indelével,

Beleza a revelar-se nos tempos que serão também antigos.

 

Comovo-me à passagem do tempo,

Abrindo pesados portões da sensibilidade expressiva

Atravessando ruas, sem que pare e espreita as almas por dentro,

Ambíguas, vastas, complexas, estreitas, inúteis,

Como ter um jardim sem cuidar dele,

Sem cortar caprichos humanos que crescem ao avançar do dia,

Ó céu de língua de trapo, vestido de rotos andrajos,

Festivo, nos dias de sol, fechado nos dias de chuva,

Nunca me darás respostas, podendo vaguear nas nuvens,

Passeio dos eleitos, tapete vermelho da fama estendido

Aos que o amor é mais que uma mensagem escrita nas paredes.

 

Abre à minha alma os braços nus, deixando-a ampla e solta

E ser invisível no seio materno desta cidade abrasada,

Vítima ofegante do antigo progresso do Mundo,

Onde se riscam horas de delícias e prazeres nas paragens

Dos autocarros, comboios, barcos, aviões e lares

Único lugar – quem tenha o doce lugar – onde somos

Livres, cuspindo raiva e nojo como se na língua

Houvesse incómodo engolir palavras obscenas.

 

Ah, rios de gente compactos, afluentes e mar onde desaguam

Almas vulcânicas trazendo fogo ardente e vapores,

Entrando, saindo, voltando a entrar, esquecidos, por vezes,

De onde vieram, quando quebraram o laço da vida,

que prazer teria abraçar a pobre velhote aleijada,

Seu rosto, escritura criada no tempo, levada no tempo

E ir ter com todos os loucos que pregam fins do mundo,

Mulheres que levam sozinhas crianças ao colo,

Verdadeiras amazonas, flores mirradas de dor e cansaço,

Enquanto o marido, indiferente de si e dos filhos

combina, num quarto qualquer longe da vista de todos

Um encontro secreto, resto zero dum romance idealizado,

E amor não é isso, não pode ser só isso

É outra coisa qualquer com aspecto de fantasma

Que não se vende nas lojas, armazéns, grandes superfícies,

Nem aterram seguros em pistas, nem rolam nas estradas,

Nem andam por escadas rolantes ou elevadores,

Nem fazem reservas de quarto num hotel de luxo,

Nem são as luzes ofuscantes das lojas barulhentas

Nem vêm nos manuais vendidos nas feiras do livro.

 

E as largas avenidas decoradas árvores despidas

Agitando selvaticamente seus ramos-cabelos,

Perdendo folhas cobertas de pó e de nervos de aço

Ouvindo histórias incríveis que se ouvem nas ruas,

Candeeiros, sempre calmos, quietos, tranquilos,

Dando claridade suficiente para não sermos gatos à noite

Espalhados no escuro, um relicário aceso de velas,

Que olhando-as fixamente, choram, tremem de medo,

E as estátuas, sempre cúmplices, suspeitas, trocistas

Têm olhos que parecem mover-se falando em segredo,

Se paramos à sua frente para contemplá-las

E imaginá-las com vida em vez dum martírio branco,

Ou verde, de estanho, ou de lixo, ou de pedra,

Cimento, de areia, metal, aço ou diamante,

Profundamente frágeis, como azulejos antigos,

Roubados por gente que é fruto da miséria moderna,

Porque é preciso haver miséria para se querer sair dela,

Haver lodo, haver pântanos, haver lama e imundície,

Vivendo agressivamente por instinto, feroz crocodilo,

Abrindo fatal as mandíbulas com alma e requinte,

Sobrevivente para nada, sobrevivente a tudo.

 

Ah, cidade que cresces sem compasso regra e esquadro,

Que fazem os deuses antigos, nesta mesma hora de Inverno?

Que lutas trava Teseu? Que amantes terá a doce Citereia

E Adónis, caindo nas graças da deusa coberta de graça e ardil,

Usando vestidos, mantos coloridos riquíssimos do inesperado,

Andando de olhar vago, pregado ao chão por romance?

E as pobres embaraçadas Ios amadas por quem na mão

brande ferozmente terrível o chicote, levando nuvens

Cobrir lugares comuns de névoas, nevoeiros e chuvas

Suspirando de alívio por Juno ter ido às compras.

E Baco? Terá virado barman em alguma discoteca,

Ou serve cafés lá em cima do alto, no cume,

Do desconhecido, do inatingível vertendo continuamente

Aquele doce licor que tem a cor do entardecer.

 

E a eterna luta travada por anjos e demónios,

Num campo de batalha celeste, ao nosso lado ou entre nós

Em lutas desiguais, em desvantagens numéricas,

Entre estupidez e inteligência, bondade e grosseria,

Forte e fraco, Bem e Mal, sem saber-se qual a causa,

Numa imposição severa de haver mesmo um Céu e Inferno,

Milagres impossíveis, as intermináveis listas de proibições,

Campos de trigo e metáforas comuns a todas as religiões,

Filosofias e doutrinas, melhor que a tua, melhor que a minha

Fazendo caretas infantis umas às outras, morrendo por isso.

 

Mar de cabelos trazendo o reino da flora até mim,

A sensação provocado de sentir perto o paraíso,

O riso nervoso, o pedido de desculpas quase inaudível,

E o comprimir de pernas, braços, mãos, cabelos, cheiros,

Almas, corpos, espíritos, ideias, vontades, caprichos

Tentando espantar a noção terrível de nossa fragilidade,

E eu sentir-me vivo no meio disto, tendo a noção que vivo,

como aquela criança se ri, e o mundo é o brinquedo

Que segura na mão, ingénuo, ainda puro, ainda livre,

Como se fosse capaz de conquistá-lo e alterá-lo,

À sua maneira inocente, debaixo da sua imaginação,

Longe da ideia que mais tarde será sempre à mesma hora

Este comboio que me leva, estes versos que escrevo,

Este encobrir incompreensível das nossas vidas

Como este poema escrito interromper-se por faltar-me

A Liberdade que concede ao poeta o ritmo perfeito

De andar num feliz segredo por esta louca Cidade….

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