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POESIA ÀS ESCONDIDAS

Poemas escritos por António Só

Proibido ser

Agosto 28, 2021

Poucos são os que transgridem nas emoções
todos temos o elástico equilíbrio de ginásio
a doença física, o juízo enjaulado
a satisfação nivelada, o prazer contido

extrava-se pouco, entra-se na sombra sem
espreitarmos a loucura a vestir-se pelo
buraco da fechadura, sem rebentar-nos uma veia
no cérebro, de sonharmos a liberdade

activam-se contas de coisa nenhuma espia-se
para activar-se a inactividade
consolo-me com poemas escritos
conseguirei erguer cidades com dois dedos

passo de óculos escuros na espontaneidade
mantenho-me vivo assim, fora de mim
porque dentro a desconstrução persiste
vou disruptivo, que o dia me seja desigual

conheces-me, meu amor, a voz expande-se-me
equilibra-se no eco inicia-se na viagem
como se flutuasse num tapete persa guardado
numa arca de contos mágicos de noites de insónia

as luzes dos candeeiros têm contos góticos
há nos repuxos autênticos festivais da canção
cristalizações de pausas desfeitas enroladas
num antigo pedaço de tecido e de saudade

por favor preciso sair à rua e encontrar
um trangressor do tempo que me conheça e
me conhecesse do passado e me visse com meu pai
levando-me seguro pela sua mão firme

um senhor sentava-se e enrolava um cigarro
no início parecia-me desenhador de mapas
criador de miasmas, pintor de metáforas
mas expelia fumo como soprano de silêncio

poderia sacudir o unicórnio que sonhara
recreá-lo num mármore em bruto e exibi-lo
numa galeria ao relento numa vila risonha
e mágico colocasse um sorriso na mulher

já apanhei comboios a meio de uma conversa
costumo adormecer em bancos do jardim em
pensamento, sempre que me dão o currículo
das veleidades íntimas de rasa superfície

já me atirei de paraquedas em entrevistas de
trabalho, fiz bungee jumping em discussões
sobre política, suicidei-me à porta de lojas
de artesanato, sou recenseado em Saturno

tomei comprimidos para dormir em cinemas
onde filmes histéricos atiram-nos latas de tinta
atiram-nos de penhascos nos ouvidos
apunhalam-nos com picadores de gelo nos olhos

não digas a ninguém, meu amor, mas sinto-me
que me meteram num foguetão e viajei à lua sempre
que me falam de como o mundo devia ser
se digo a verdade calam-me com mentiras

 

Em sentido inverso

Agosto 26, 2021

 

Não quererei ver a alegria contra a parede
a ser algemada por crimes que não cometeu
a lógica tomou um comprimido para dormir
flutua num sonho de máscara e seringas

tudo é a 50 por cento, filtra-se o cheiro
de pinheiros no verão quando se banham
ao sol e ao fogo, este a 200 por cento
vai alastrando, querem-no desconfinado

se ao menos vivesse para sempre
andaria na terra para ver a mentira de hoje
porque a verdade será encontrada por
arqueólogos e proscritos numa vala comum

atiram-se boias e gibóias em simultâneo
emigra-se a caminho da nova escravatura
agora vendem-se nas bancas digitais
fábulas verdadeiras de alienígenas

vai-se caminhando, teme-se o pior
viajei para longe, fui até ao pátio
espretira se o sol era igual e senti frio
ando ao contrário do aquecimento global

na roda da mundo a mão insana que a gira
a mão que domina o sentido dos ponteiros
o céu não tirou o capacete azul e as nuvens
são farrapos de um velhinha sem reforma

vai-se agarrando as regalias pelos cabelos
o ódio solta-se num simulacro mudo
pensar descabido julgarmos que
o senhor do mundo é bilionário

mas o senhor do mundo é o Tempo esse
levanta as saias à justiça e
beijando na boca as memórias antigas sem
fazer barulho, rato que progride

a serpente voltou a entrar no paraíso
vivemos num circo histérico estéril
ficando numa fila, pensava que ficaríamos
no eterno à espera de sermos atendidos

Não desfaças já as malas, Eduardo é possível
que o tempo de usar cabeleira e terror volte
há novas bases de dados e há dádivas novas
pelo sim pelo não apaga as luzes de presença

 

O vírus

Agosto 24, 2021

IMG_20210822_171348.jpg




Os dias repetem-se, o solo seco assume
a pele encarquilhada de elefante o mar
esse coloca-nos a questão se subirá de tom
no diálogo imprevisível entre Homem e Terra

não estaríamos perto do precipício se não
houvesse perigo, assume-se que o homem
é praga que se pensa ser tratada com
histeria, culto da morte medo e tecnologia

bem sei que o desafio existe para ser ven-
cido mas o desígnio das castas invisíveis
é superior às nossas vidas invariáveis
quer-se um produto futurista, um herói robot

sairemos vencedores, mas seremos leopardos
comendo nas árvores sozinhos seremos ilhas
indivíduos feitos de papel que se amarrota
servindo reciclável de combustível à medicina

existem mordomos e porta vozes da natureza
encarregaram-se do susto, pânico, do terror
as coisas dizem-se de maneiras diferentes
mas os sonhos anulam-se nas mágicas rotinas

Ela que fala na linguagem das marés eclipses
degelos dilúvios tempestades tornados
fala por si própria sacudindo água do capote
como o meu pai, só nos avisará uma vez

 

Alien

Agosto 19, 2021

IMG_20210724_234611.jpg

 


A password passou a ser vacina

entra-se na liga dos Campeões com
formulário em branco sem doença
divaga-se muito sem saber

é hora de encravarmos o tempo
adivinha-se anómalo e bicéfalo
invulgar como se invertessemos a chuva
e a terra girasse em sentido inverso

iremos por corredores de teatro em ruínas
imundo de opressivo cheiro a urina
carregado de mentiras e ácido sulfúrico

viu-se como cegos nos tornámos ao
determos nas mãos a verdade incómoda
revelada num auditório de assassinos

Ágora

Agosto 18, 2021

Estive alguns anos preso ao romantismo
falávamos disto nos fins de tarde sempre domingo
perdíamos a noção do tempo tendo por amanhã
garantido, oposto ao presente, hoje futuro

a caligrafia poética prendia-me a atenção
tentava absurdo desenhar com escrita casta
coração selvagem, ainda puro, ainda limpo
não gasto, suavíssimas linhas de inocência

tragam-me silêncio, absoluto, copo de absinto
alucinação do poema áspero que deslumbre
somente perturbadas almas pelo sono ambíguo

poderão vir bater-me à porta se desejarem
nos dias que estarei a estender versos molhados
ao sol da minha infância, ao sol da juventude

Afeganistão

Agosto 18, 2021

 

Chegaram os estudantes da tortura
esmagavam flores ao invadirem as ruas
com suas botas negras ensanguentadas

distraídas as crianças faziam desenhos
foram-lhes retiradas das mãos à bruta e o choro
seria a única música que conheceriam

não se viam mulheres na rua
haviam sinais de proibição de mulheres na rua
caminharam séculos dentro de casa

de um lado para o outro, enlouquecendo
pensando se o suicídio seria sábia solução
ou sonhando que um dia apanhariam sol

numa praia de rostos dignos e compostos
em público mergulhando livremente no mar

 

O ciclo do medo

Agosto 11, 2021

Ando a coleccionar Apocalipses e Armagedões
cromos de abomináveis cavaleiros míticos
vulcões de tamanhos s, l e xl
a ver se consigo morrer antes do tempo

conspiro contra conspiradores
com os que negam conspirações também
sobra-me tempo e querer vivê-lo
é viabilizar o medo incoculando-o.

o medo genuíno é mendigo de andrajos
famélico sujo a bater-nos à porta
ultimamente saio pelas porta dos fundos
o medo assemelha-se às seguradoras

quando era miúdo sentia medo do meu pai
sentia medo da minha mãe, da minha avó
da professora da escola de miúdos terríveis
das auxiliares com sangue nos olhos

medo de beber água fria, comer laranjas
à noite, dizer mal de Deus, comer moscas
andar nu na estrada, vai-se por um caminho
não poder sequer rebentar os miolos à vontade

desde que nasci lembro-me que um dia

experimentei não ter medo, foi um erro
tremia por respirar livremente desconfiei
e senti medo, logo sou cidadão do mundo

proíbe-se tudo, andar a pé, de carro
avião, comboio, eléctrico, de mulher
de minotauros minorcas em lojas
com acrílico aqui acrílico acolá

preciso de certificado da minha existência
pulmonar, da doença, do pânico, do susto
fui multado por amigos por fugir à seringa
esquartejado em pedaços nas opiniões.

deve ser bom ir à Lua e ter dinheiro para
girar o mundo inteiro com as mãos sujas
invocar-se o vómito, a matéria imprevisível
ser de carne osso, votivo ao medo.

Não queria dizê-lo, mas repito: mandem-me
doses gordas de medo até que Fobos trema
fiz uma lista de tragédias gregas que podiam
acontecer-me no corpo e cheguei ao infinito

há especialistas do mundo que parecem putas
nas esquinas a pedirem-nos lume e medo
não me disseram quando nasci que devia ter
medo, medo, medo, medo subsequencial

não me explicaram que os andaimes da terra
iriam ruir-nos em cima como sempre fizeram
os mares subirão de tom como sempre fizeram
os céus irão engolir-nos como sempre engoliram

um índio dos antigos quando encosta o ouvido
à terra, não é o trotar de cavalos que escuta
mas sons metálicos que nos furam os tímpanos
rios caudalosos a metamorfosearem-se em ouro

há países fumadores que nos dilatam as veias
entopem-nos as artérias, envenenam os ares
eu que não fumo obrigam-me a deixar de fumar
eles continuarão a fumar cachimbos gigantescos

o vírus, a pandemia, o horror, a calamidade
a zaragatoa, a pandemia, o horror, o cata-
clismo, o autoclismo, o pânico, o plástico
o vírus, a pandemia, o horror, a jaula

a última vaga pior que a primeira o vírus
multiplicado por línguas de sangue cíclicas
da chuva, a nossa existência a crédito
a verdade ser mentira, no fundo, o medo

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