Tão longe o homem está da perfeição:
Por onde Deus andava nesta altura
Deixou que fosses alvo de violação
Menina inocente, virgem, pura?
À bruta se rebenta na oração
À faca a luz se rasga em noite obscura
À bomba bombardeia-se a razão
Que as mãos dá à barbárie, à loucura.
O mal não dorme, O bem, esse Amor cego
Vazio no seu lírico discurso
Sorri, extasiado de prazer
Coloco sal na ferida pois carrego
Contendo este meu franco e fraco impulso
Já muito antigo, ó Morte, que é sofrer
Infante da preguiça, do cansaço
Amante da música, da poesia
Honesto gato, manso em teu regaço
À escuta do piar da cotovia,
Incauto desse mal que move o mundo
Inquieto nesse verso em fundo espaço
Incerto a mergulhar no ser profundo
Arauto do perigo em corda de aço,
Abrigo com lareira, spa, jacúzi
Amigo de ninguém, de toda a gente
Fiel à Lua, ao sol, ao céu, às estrelas
Versos, meus diamantes, lápis lazúli
Paixão só por quem sofre, ama e sente
E os anos são quarenta caravelas
E se adoptasse um gato orfão na minha alma,
Transpondo os altos muros, ágil e felino
E caçasse ratinhos, pássaros e calma
E mos trouxesse intactos como o meu destino?
E se adoptasse um gato só por companhia
Como um idoso adopta o dominó na Morte
E no sótão caçasse versos? Dar-lhe-ia
Um peixe saboroso que lhe coube em sorte
Selvagem, meu gatinho, dúctil na imagem
Dormirás no meu colo, eu te afagarei
O teu lustroso pêlo e serás a paisagem
Que numa tela absurda e gasta te encontrei.
Teus olhos são as portas que abri-las desejo
É lá que avaro guardas jóias, alma vendida.
Há armadilhas esparsas, veneno e queijo
Cautela! Coloquei aos ratos desta vida
Serás meu guardião, como no antigo Egipto
Quando eras divindade, ai de quem te matasse
E esse miar será um bálsamo que grito
Onde tua cauda nunca de ira se agitasse.
Acusam-te que és falso, esquivo, traiçoeiro
Porque não és submisso à vontade humana
Indómito, sincero és bem mais verdadeiro
Que os homens nesta vida inútil, torpe, insana.
Em fúria, exibirás tuas garras em defesa
Da alma. Lembras-te? Assim vieste a mim parar
E possas desferir teus golpes com frieza
E essas bestas e abutres da vida esquartejar.
Se deflagrar um fogo que por nada dei
Vem dar o teu alerta num miar aflito
Que eu, com mágoas antigas, logo extinguirei
O fogo posto por algum anjo maldito
O cheiro quente quente dos pinheiros
Que o vento traz da serra no Verão
Os troncos desnudados dos sobreiros
São saudades que ardem no coração,
E os braços estendidos dos loureiros
Aos raios do Sol profunda tentação
Inspiram-me estes versos estrangeiros
Que vão além-fronteiras na ilusão.
Ao Sol, tudo arde enfim, tudo se abrasa
Nada lhe escapa, aos seus dedos fogosos
Tornando o ar um óleo que sufoca
À janela do meu lar, da minha casa
Lembrando quentes dias rigorosos
Deu-me a memória um beijo em minha boca
Não vejo um palmo à frente do nariz
Meus olhos andam postos no infinito
Meu rosto espelha pânico, conflito
Na escolha ser poeta, ou ser feliz
Ando a desatar nós que eu próprio fiz
E os versos sacudidos que no ar agito
São convulsões dum pássaro que grito
Num quadro preto, o branco pó do giz.
Não sou moldável plasticina ou barro
Nem combustível que alimente um carro
Incompatível no universo inteiro
Sou vago, como a luz que a vela dá
Inútil especiaria que não há
Serei sempre o que, em nada, foi pioneiro