E se adoptasse um gato orfão na minha alma,
Transpondo os altos muros, ágil e felino
E caçasse ratinhos, pássaros e calma
E mos trouxesse intactos como o meu destino?
E se adoptasse um gato só por companhia
Como um idoso adopta o dominó na Morte
E no sótão caçasse versos? Dar-lhe-ia
Um peixe saboroso que lhe coube em sorte
Selvagem, meu gatinho, dúctil na imagem
Dormirás no meu colo, eu te afagarei
O teu lustroso pêlo e serás a paisagem
Que numa tela absurda e gasta te encontrei.
Teus olhos são as portas que abri-las desejo
É lá que avaro guardas jóias, alma vendida.
Há armadilhas esparsas, veneno e queijo
Cautela! Coloquei aos ratos desta vida
Serás meu guardião, como no antigo Egipto
Quando eras divindade, ai de quem te matasse
E esse miar será um bálsamo que grito
Onde tua cauda nunca de ira se agitasse.
Acusam-te que és falso, esquivo, traiçoeiro
Porque não és submisso à vontade humana
Indómito, sincero és bem mais verdadeiro
Que os homens nesta vida inútil, torpe, insana.
Em fúria, exibirás tuas garras em defesa
Da alma. Lembras-te? Assim vieste a mim parar
E possas desferir teus golpes com frieza
E essas bestas e abutres da vida esquartejar.
Se deflagrar um fogo que por nada dei
Vem dar o teu alerta num miar aflito
Que eu, com mágoas antigas, logo extinguirei
O fogo posto por algum anjo maldito