A Cidade
Novembro 19, 2010
Tudo me delicia pra manter-me vivo,
Anónimo, soturno, bebo mil imagens,
Como um licor ardente, torna-me cativo,
Engulo avidamente rostos e paisagens
Será mais tarde um filme visto mentalmente,
As coisas têm o lacre agudo da saudade,
Não sei porquê costumo gravar geralmente
Máximas que gritem Amor e liberdade.
Na frescura das manhãs, do alto monte vê-se
As povoações cobertas de neblina branca
Parece que vivemos nas nuvens; parece
Flutuantes sonhos que a vida nos arranca.
A rapariga fuma à porta de uma loja,
Para matar o tempo acaba por matar-se,
Minuto a minuto, a sua boca enoja
A arrogância no olhar denuncia adorar-se
A idosa mal vestida, imunda, esfarrapada,
Emana um cheiro infecto, odor da podridão
Altiva, uma mulher passeia abençoada
Pela beleza só; pela Virtude, não.
A jovem rapariga no comboio à tarde
Espalha uma fragrância doce por encanto,
Homens, cheirando a vinho, sem fazer alarde
Apalpam-na com fogo nos olhos, a um canto.
Complexos de alumínio e vidro me parecem
Meu dédalo mental de música e de versos,
Beijam-se dois homens – que ternura – esquecem
Os olho que rotulam de doentes e perversos.
Estão certos. Este beijo é o século vinte e um.
Prefiro flores, música, Arte e Poesia
Não me formei doutor, não tive jeito algum
Mas falo ao mendigo com igual simpatia.
Ouvem-se sirenes, a canção do pânico,
Sinfónica, a cidade tem espasmos de inferno
Intrusos, entram sons metálicos, mecânicos
Matando o que de mim é calmo, puro e terno.
Como painéis ruidosos digitais, complexos,
Secam com avidez as tetas da mãe-terra
Chegam-me aos ouvidos sonhos desconexos
A vida é uma flor na lama que se enterra.
Viver é estar na fila à espera impaciente
sinto um tigre no estômago a rugir de fome
Morde os glúteos firmes de quem está à frente
É uma senhora fina que lhe ignoro o nome.
Deixo-me embalar no vento repentino,
Levo a mão aos versos dentro da algibeira,
Corro a enganar as ânsias do destino
como as águas da chuva inundam a ribeira.
Nos dias em que o céu é azul, imaculado
Guarda o rebanho plúmbeo de nuvens cativo
Dos rastros de fumo dos aviões, riscado
O céu é um tabuleiro de xadrez festivo.
A calvície dos choupos, plátanos que soltam
Folhas outonais, varridas pelo vento,
Meus olhos consumidos pelo Outono escoltam
Imagens sepulcrais que inspiram desalento.
Sobe a melancolia! A canção do crepúsculo,
Canta-se nas ruas cânticos de pressa
Rugem autocarros, carros, sou minúsculo
Pudesse ser árvore que vive sem pressa.
Ouve-se um comboio; passa como a cobra
No milheiral de rostos, braços e cabelos
O dia mais um pouco de sono nos cobra
Desenrolando à noite cansaço aos novelos.
Olho, entre a folhagem, vagamente, espreito
Das árvores esguias, o sol infantil
Brincando de arco e flecha, acerta-me no peito
Para lembrar-me o quanto sou frágil, inútil.
Fere-me os ouvidos a canção do pobre,
Morde-me o metal batido, martelado
Mata-me a ganância dum rico que encobre
A luxúria em que vive de putas rodeado.
Cordões policiais, armados de bastões
E escudos, como em tempos temíveis espartanos,
Do outro lado tigres, lobos e leões
Com ódio, paus e pedras aliviam danos.
E quando a noite cai, e quando a Lua sobe,
Ao vê-la retocar a sua maquilhagem,
Aplaudo o strip-tease quando atira o robe
Pra longe, e de luar, ilumina a paisagem.
Antiga como o Tempo, um relógio celeste
Nocturno, como triste cuco abafa a dor,
Caminha, majestosa, em direcção a Oeste,
Como se lá estivesse à espera o seu amor.
Acendem-se luzes sombrias nos subúrbios
De cor alaranjada, lúrida e fatal,
Como se ardesse um lume; ouvem-se distúrbios
Ao longe, me parece que lá dorme o Mal.
Curvo-me perante a dádiva da vida,
Finco as mãos nas curvas ancas deste mundo,
Até que a minha alma flutue perdida,
Até que solte o último suspiro profundo.