Num latejar dormente da minha alma em brasa,
À tarde, quando o sol tem quebras de tensão
E inunda, do horizonte, de ouro a minha casa,
Puxei dum papel branco e ouvi meu coração.
Os dias são réplicas dos dias. Que proveito
Inútil perguntar se Deus realmente existe,
Mais que viver a vida com vil preconceito
e assim, contrariamente, à alegria resiste.
Rastejo como a cobra pelos milheirais,
A ver se descortina um calor renovável
Para extrair do peito notas musicais
Mudando meu discurso actual, desagradável.
A culpa é da opressora saudade que aperta
Como a lúcida imagem da funesta amante
Com mágicas carícias suas me desperta
E que me impele a ser poeta degradante.
Em qualquer sítio, hoje, é como se não estivesse
Minha alma, como a ave da árvore se lança
Solta-se do meu corpo como não vivesse,
Fixo os olhos no infinito doce de criança
Meu corpo é um velho prédio em ruínas. Lentamente
Todo o esplendor que havia e que tão mal esbanjei,
Um beija-flor sem flor, tigre na jaula ausente
Qual árvore me dá sombra em que me deitei?
É como se descesse a escada em caracol,
Na mesma direcção que nos conduz o vício
Nos tira por capricho o dom de ver o sol
À deriva no dorso mar, mar de suplício.
Calai-me estes papéis com vozes sepulcrais,
Com cantos de sereias de lábios vermelhos
Pintados com batom púrpuro, musicais
Que vivem com olhos cravados nos espelhos.
Como a sacerdotisa e bela Pitonisa
Que no Templo de Apolo ficou sem emprego
Minha alma flutua no ar, águia indecisa
Como se o ninho fosse o fardo que carrego.
Virá o Outono triste varrer secas folhas
Que são versos caídos do meu sentimento,
E tu, rosada orquídea, diz, por que me olhas
É por tocar-te as pétalas em pensamento?
Para onde foi morar minha espontaneidade?
Em que caverna obscura vive meu querer?
Na gare, em que comboio me chegou a saudade
No cais, em que navio atracou este viver?
Farol do meu destino avariado no mar
Um dia hei-de trocar-te as lâmpadas fundidas
Mas não existem mais navios pra iluminar,
A minha alma dissolve-se em almas rendidas