Anónimo, sem rumo, andando pelas ruas,
Sem ter noção do tempo, nem sequer da Morte,
Saí! Fui ver-te, Vida, como amas e actuas
Nesta cidade antiga que me coube em sorte.
Plátanos e choupos, agitam-se no Outono,
Vê-se no chão tapetes de douradas folhas,
Olhando à volta sinto nos semblantes sono
Para encontrar a Vida, ó céu, finjo que me olhas.
Vestem casacos curtos, longos, uns compridos
Senhoras com vestidos de lã insinuante
Eu sou o céu que olha os seios comprimidos
De elegantes mulheres com ar triunfante.
Na altura em que Maria deu à luz Jesus,
Uns dizem que em Dezembro, outros num mês qualquer
Enfeitam-se árvores, prédios com jogos de luz
Por homens pendurados bem no amanhecer.
Jaz um guarda-chuva morto no passeio,
Foi sepultado ali. Por epitáfio tem
“Servi, honrado, alguém como bem lhe conveio,
Vivi sem ter vivido, sem ter sido alguém.”
Eu tenho, por rotina, nas manhãs iguais,
Ver um homem dormir, numa porta de entrada,
Dum prédio onde, elegantes, vivem racionais
Doutores, arquitectos, com vida abastada.
E as árvores estremecem no meu pensamento
Na minha mente caiem folhas de ouro fino
E pétalas de flores, travam meu lamento
Que um dia poderei sofrer igual destino.
De vê-lo, amaldiçoo Deus e o diabo,
Somos jogo de damas destes dois patronos
Dói-me a cabeça disto, a fronte, os pés, o rabo
Por sermos múmias vivas, mortos, bestas, monos.
Nisto, entro, soturno no covil sombrio,
Depois de ver miséria, ignoro vãos lamentos
Nos ares confortáveis não chove ou faz frio
Vivem ignorando alheios sofrimentos.
Anda nas ruas da cidade um Baco errante,
desflorada Vénus pelo injusto Marte,
Medusa, no suplício expresso no semblante
Corre um rio de vício por toda a parte,
Corre nas ruas da cidade um vinho errante.
Fitam-nos as montras com olhos sedutores,
Apinham-se cafés que cheiram a imundície
Trocam-se olhares deste tédio redutores,
Florescem prantos, semente que alguém disse,
Porque as montras têm olhos sedutores.
Não sinto ser de Deus uma útil ferramenta,
Sinto que sou a sua pior dor de cabeça,
O tempo, esse escultor perito, esculpe, inventa,
Andarmos ao acaso, eternamente à pressa.
Quem pode ser assim de Deus a ferramenta?
Assim deverá ser o beijo do vampiro,
Depois de drenar o sangue à sua vítima,
Paredes de papel, pergaminho, papiro,
Perdendo dia a dia o rastro a quem nos estima,
Assim recitarei meu verso de vampiro.
Que belas ancas tem minha cidade antiga,
Todos a seguram, amam, e maltratam,
Como caímos facilmente na cantiga
Dos cegos poderosos que as mãos nos atam,
Que bela gente educa esta cidade antiga!
O nosso lar vazio tem mil olhos,
Curiosos, que me espreitam do invisível
Rugem como as águas dos escolhos,
Como estar vivo ser quase impossível.
Breve me seja o exílio, este desnível,
Entre meu querer puro e não poder,
Ando nas nuvens, guiando o dirigível
Flutuando, no ar levíssimo... até ver...
Bem sei que é uma passagem transitória
Que, amor, deve fazer-se sacrifício,
Mas custa-me não ter-te aqui bem perto,
Assim, sou personagem sem história,
Bebendo o pó da terra do suplício
E tudo o que me envolve é um deserto.
Mesmo que não seja poeta da alta roda,
Daqueles que se expõem a magras entrevistas
Sou quem fujo sempre a esta nova moda
Vindas das modelos expostas nas revistas.
Mesmo que não torne a ver a luz do dia,
Dirão de mim que fui um pobre visionário,
Serei mais tarde sombra a sombra que fazia,
À tarde, na infância alegre de Icário.
Nem que me estrangule, rasgue o peito, ou chame
Os filhos de Eólo ou me torne mendigo
Eu fugirei da vida, sempre que reclame
Mesmo ambígua alma, que é do corpo abrigo.
Subo o patamar que não se quer mais nada,
Mais que Beleza oculta que esta vida tem
Coleccioná-la e vê-la bela, encadernada
Nos dias de velhice ou folheá-la no Além.
A noite desfalece nos ombros da terra,
Numa tontura igual à quebra de tensão
Ó bacante feroz que seu lábio me ferra
Esvazia-me esta noite cheia de solidão.
Jaz minha inspiração, sofrendo contorcida
Olhando, vagamente, as coisas que tocaste,
Assim me fita a noite, mole, esmaecida,
Permanecendo tudo igual como deixaste.
As plantas que regavas, hoje rego-as eu,
Silêncio que rasgavas, não é mais rasgado,
Mudar é sacrifício, olha-se muito o céu
Olhar o céu deprime, o sol foi resgatado.
E ao mais pequeno ruído, ao mais pequeno rasgo
Poético, parece que tudo perdera,
Que cheiro na poesia, a lixo, a nojo. Engasgo,
Como subitamente, a Lua, amor, morrera.
Dentro do nosso lar sou qual morcego cego
Na escura casa emito ruídos mentalmente
Metáfora invocando, como me encarrego
Suavizar a angústia fria, mansamente.
Mensagem lida. Falso alarme! Estrondo! Farto
Engasgo-me, flagelo-me, encolho-me,
Que plácido delírio! Nesta barca embarco,
Deixo-me ir no mar brumoso, abandonando-me.
Passeando num jardim sombrio de mosteiro,
Sigo a própria sombra elástica, azulada,
Sonda lançada ao espaço sem ter paradeiro
Sem ti sou nevoeiro, névoa, nuvem, nada.
Cambaleante tem meu pensamento andado
Bicho encarcerado dentro de uma caixa
Fechado num baú, fechado a cadeado
Cortina de veludo vermelho que se baixa.
Desafinado piano, entorpecida flauta
Violino sem vara, orquestra sem maestro,
Sinfonia composta a pontapé, sem pauta
Sem ti sou poeta, solitário, sem estro.
Vejo Chopin ao piano, cadavérico,
Tão pálido e febril igual à lua,
Tocando um “...e esta vida continua…”
Sozinho, num silêncio atroz e histérico.
Irei, meu ser, espírito esotérico
Enquanto paira a melodia em mim
Lançar minha pergunta ao Tejo, enfim,
Porque nasci assim: calmo e colérico?
Que encontre esta resposta na espessura
Que afia avidamente dentes, garras
Quem, com profana mão, o amor embala
Suspiro! Cai a noite, igual e escura!
Cerrada solidão, porque te agarras
A mim, sempre que a minha voz se cala?
A madressilva cresce com suas bagas roxas,
Colada à coluna de mármore rosado
Que tua flor febril, por entre as tuas coxas
Emana – ó Paraíso, um cheiro adocicado.
Gasto de cumprir mandatos e deveres
Opostos à vontade imprópria e proibida,
Na tua entrada rósea existem mil prazeres,
Onde lá dentro posso achar uma saída.
Lábio humedecido, encontra um louco lábio
Pergunta-lhe: Quem és, que vens matar-me a sede?
Morde-se a si próprio, responde qual sábio:
“Sou lábio igual a ti que por teu amor pede”
A rigidez dos corpos gélidos dos dias
Derretem nesta dança o gelo glacial,
Pudesse derreter-te a alva neve, e gemias
Canção primaveril, triunfante e musical.
Num sufoco dorido, encontro o meu martírio,
Achar-me nos jardins antigos do prazer,
Há muito que não gozo ou voo num delírio
Nos céus coroados de fogo ao entardecer.
Declame a minha boca versos proibidos
Ouse cantar-te só o que minha alma sente
Não mais suporto a angústia de estarem contidos
Num músculo sanguíneo que há na minha mente.
Sejas vibrante lira, ou harpa encantadora
Sejas violino agudo ou grave violoncelo
Que tua alma se enleie, Musa inspiradora
E rolem, nossos sexos, juntos num novelo.
Que nossos corpos nus se unam numa causa,
Alívio dando à Vida, à Morte dê repulsa
Entre mansas carícias, beijos curtos… pausa
A pele se arrepia, o corpo o aperto expulsa.
É por sentir que o sangue em mim se inquieta
Igual a um mar revolto, obscuro e falso,
Que o corpo se encaminha ao cadafalso,
Cumprindo o que esta vida me decreta,
Como compete ao ambicioso atleta
Vencer, tendo o triunfo, por encalço
Nem com feridos pés, corra descalço,
Eu cortarei um dia a última meta.
Ignoro se fui sempre quem escolhera
(Se por orgulho, crença, vão delírio)
As originais cores com que pinto.
Respondo, simplesmente, à voz que impera
No íntimo, amálgama ou martírio
Seguindo a escura estrada, por instinto
Sou milionário, amigos! Milionário
Com versos, fiz fortuna, enriqueci,
São vibrações da lira que tangi
São cartas escritas sem destinatário.
Não tens convite? Não é necessário,
A entrada é livre pois o que escrevi
Sem restrições, são coisas que vivi
Tontura de sentir sempre o contrário.
Abram-se em mim garrafas de champanhe,
Soando altissonante a Ode à Alegria
Festejo ter chegado ao poema mil;
Haja na festa alguém que me acompanhe!
Brindemos: à saúde da Poesia!
Brindo também contigo, ó Mundo vil!
Na rugosa impotência, inerte de rochedo,
No inesperado, um dia o fado cumprirá,
Cairá morto no chão, metendo ao mundo medo
Louca sinfonia que da pauta sairá.
Páris, mulherengo, de Helena enamorou-se,
(Que sua seta em mim nunca, fatal, perfure)
Do amor jurado eterno, Tróia incendiou-se.
(Que em mim funesto fogo não me invada ou dure)
Prefiro de ti, astro, sedutor, já quando,
A aurora vem abrir-te seus portões rosados,
E à sua irmã de prata vai seu ouro dando
Como dizendo aos homens: “cumpri vossos fados!”
Dentro de mim murmura um rio que vermelho
Corre, excitado, inquieto, ansioso por querer
Levar os mil pedaços deste imundo espelho,
Que o íntimo da flor nunca me deixa ver.
Ergue-se a voz macia, suave do crepúsculo,
E as nuvens cor violeta ocultam-me esse sol,
Não sei que sensação me aperta como um músculo
De sangue purpurino igual a este arrebol
Ah, se o colher de fruto fosse proveitoso,
Eu levaria à boca a fruta que escolhesse,
De súbito dissipa-se o amor vaporoso
Como a Lua se esconde e o sol nos aquece.
Suspiro! Empalideço, náufrago à deriva,
Neste mar ignoto negro e traiçoeiro
Anda escondida a esp’rança que se mostra esquiva,
Qual Dafne convertida num verde loureiro.
Beijo, com ternura os lábios dum cometa
Que me fura a barriga e passa com fulgor,
Desvio-me do moço cego de arco e seta
O mesmo que ferira Apolo por rancor.
Por entre o revoltado e feroz rio,
De atravessá-lo, quase me afoguei,
No fim, tremo de susto, dor e frio
Lembrando a última vez que me molhei.
Que apenas duas margens nos separam,
Nas tumultuosas águas do prazer,
Tentei atravessá-lo a nado: entraram
Répteis e medos teus pra me morder.
Bem sei que ser audaz, amor, em excesso,
É errado; que o contrário é cobardia,
Mas não te peço mais do que mereço;
Não chamo, por querer-te, ousadia
Porém, por ver-te nua, não me impeço
De em ti me ter até que rompa o dia