Congela numa noite os teus deveres,
Não vês que a Lua é sólida um altar
Para amantes, dos íntimos prazeres
Em dois corpos num corpo comungar.
Tu sabes, minha amada, a vida é breve
Não vês que as horas passam num instante?
Serei teu sol a derreter-te a neve,
Deixa-me ser teu esposo e teu amante.
Ignora os que te prendem noutro ofício,
A vida vai-se e, amor, nunca mais volta
Porque te amo e te quero, não por vício,
Por dentro arde-me um fogo de revolta
Sem sombra de cansaço, de suplício
Como se um vendaval andasse à solta.
Atrai-me o extremo, o oposto, a simetria,
Das nossas duas almas diferentes,
Teus olhos de água mostram simpatia,
Meus olhos, chispam fogo, rangem dentes,
Atrai-me a eterna luta: o Bem, e o Mal,
Saber quem sai vencido e o vencedor
Por um querer fatal ser mais fatal
Amor ser devolvido ao predador.
De esquivar-me das setas de Cupido,
Andei no tempo exacto tão perdido
Rumando incerto sem ter direcção
Mas se escutares bem ouves teu nome
Acelerado como quem tem fome
Do outro, ritmo do meu coração
Deixei extinguir-se a chama ardente em mim,
Esvair-se em sangue antigo sonho alado
Que morna e terna a vida fosse assim.
Pois que por ti me sinto bem amado
Deixei que me arrombasses triunfante,
Como águia da fortuna o céu vencesse,
Meu coração, um claustro sufocante
Julguei que a seta de ouro me doesse.
Corria-me nas veias um veneno
Letal, adormecendo meus sentidos
Fazendo as horas serem longos anos
Que absurdo se tornava e mais pequeno
Meu mundo de suspiros engolidos
Até que vieste, enfim, curar meus danos
Se humilde via o verso ser um sonho,
Sorrir-me de manhã pela janela,
Como a andorinha alegra o que é tristonho,
Como o calor aquece o que me gela,
Como se visse e fosse um pobre cego,
Como se andasse nobre entre mendigos.
As mãos que tinhas são as que carrego,
Nas minhas, que me dão bondoso abrigo.
Hoje, que somos? Diz-me: os mesmos de ontem?
Tu casto lírio, eu da Ópera fantasma
Confuso, eternamente apaixonado
Ou eco devolvido que contem
Um grito silencioso que não pasma
O mundo, que anda mudo e preocupado?
Que céu mal humorado, insípido, cinzento!
Contei-lhe uma piada e nem sequer se riu,
Nem sequer revelei sombra nem pensamento,
Nem sorriso esboçado, nem sequer me ouviu.
Contei-lhe que meu filho começara a andar
Um passo, dois e três, e o quarto veio depois,
A minha mão não quis, que se aprontava a dar
Do sol nada viera, nem um raio nem dois.
Ó deus da Poesia, ó Febo que te afogas,
Languidamente à tarde, no cerúleo lar
Também tu duvidoso ao céu te interrogas,
Se na terra tens visto Jove a caminhar.
Conta a lenda quando o céu se envolve em bruma,
E sobre a terra espalha um denso nevoeiro,
É frívola paixão viciosa, que costuma
Dúvida a Juno dar sobre seu paradeiro.
Conta-se que um dia andava a bela Io,
Incauta passeando sobre um verde prado
Logo inflamou-se o deus pela filha do rio
Bordando o céu de nuvens, na cinza ocultado.
Da escuridão cerrada logo desconfia,
Sua esposa por ciúme, corre a procurá-lo
Por medo o deus transforma aquela que o enibria
Numa novilha branca pra justificá-lo.
Enfim, são mexericos, temas de conversa
Doces para tertúlias fúteis cor-de-rosa,
Onde a verdade fica escura, controversa
Sobre amorosos contos da gente famosa.
Cá dentro, a orquestra inteira desafina,
De ensaio o som me sai antes do início,
Que dissonância atroz, que sacrifício,
Cá dentro ouvir-me! Ó voz clara e divina,
Que todo o ser que canta em si encerra
O canto que nos faz surpreender,
Não faças, minha Musa, desaparecer
Mil cânticos que criam paz e guerra.
Nem sei se vivo um sonho, uma ilusão,
Ou se durmo, ou se vivo vagamente,
Sombra esvaída em sangue ao fim da tarde,
Mas sei que ando atrelado à sensação
Como se fosse um lago transparente
Que vê-se no meu fundo um fogo que arde.
Barra-me meu caminho um medo abrupto,
Fogo vivo, que se alastra pelo peito,
Sonhando, o impossível: ser perfeito
ter alma pura num corpo corrupto,
Mostra-se altivo horrível, imponente,
Não vale a pena dar-lhe confiança,
Acerto-lhe nos olhos com esperança,
Que possa um dia ter dia diferente.
Farei com versos tantas armadilhas,
E colocá-las para que tropece,
Num rastro de palavras que o confundam;
Mostrar-lhe-ei, sorrindo, maravilhas
Criando imenso espanto que entorpece
As fracas criaturas que me afundam
Não fosse eu de vapor e misturar-me além,
Das nuvens cor de chumbo, estranhas, peregrinas
Não fosse cedro, abeto, bétula, também
Brotos novos primaveris que me destinas
Crescem no jardim, do íntimo desejo,
Que me obrigando vão a ser um vigilante
No fundo deste céu há outro céu que vejo
Mais puro como um anjo, forte e triunfante.
Não fosse eu feito de água e na terra entornar-me,
Da taça que esta vida vasta agora esculpe,
Fosse Amazonas, Nilo, Ganges, transbordar-me
Noutro oceano imenso, que outro me desculpe.
Ou transformasse em lagos estas planas terras,
Virando em charcos prados verdes que amo e gosto,
Subo e desço os ombros desta linda serra
Onde não há indício de angústia e desgosto.
Pudesse no poema por ponto final,
Soando a um final, oposto a este início
E reinventasse o fogo, o ferro e triunfal,
Pudesse combater as hostes do suplício
Daria pra correres com cesto na mão,
Em busca do morango doce, do mirtilo
Dos frutos que se encontram só no coração,
E não fosses esquiva como o esquivo esquilo.
Há nesta imensidão escura aveludada
Uma lágrima solta, suave e purpurina
Rolando na marmórea estátua cinzelada
Pelo meu gosto, flor erótica divina.
A fresca exalação da boca, a primavera,
Do corpo, o movimento clássico do mar,
O fluxo e o refluxo, o sexo e a quimera,
Num leito perfumado, nimbado de luar.
A cama cor de musgo, o sonho cor do céu
O beijo de cereja, o envolver dos ramos,
teu corpo transparente, a timidez de véu
Nervosas mãos que tangem músicas que amamos.
É tudo o que imagino, sonho, anseio e quero
Roubar-te doce fruto do estreito pomar,
A lassidão da tarde, o sol, o desespero,
A pressa nos meus braços ter-te e abraçar.
Há neste firmamento miríades de estrelas
Várias constelações, se unires os meus versos
Figuras luminosas, luzes, sentinelas
Milhões de sentimentos vagos e dispersos.
Há nesta escuridão imensa um mar de luz,
Quando na luz me sinto cheio de escuridão
Reúne este meu mundo: vê o que produz
Vê nítido o fundo, o fundo do meu coração.
Lembram-me os jardins da babilónia antiga,
De jardins perfumados de labor lascivo,
é meu segredo, abrigo, onde canto a cantiga,
De quem se sente só, pasmado e pensativo.
Tem o odor da crença, o odor morno do sexo,
As contrações finais do milagroso músculo,
O cheiro a liberdade, a suor do meu amplexo
Sorrindo em direcção à chama do crepúsculo.
São versos arrancados quando a hora aperta
Com aspereza as mãos cheias de imenso tédio,
Passeio à beira mar numa praia deserta
Se do terrível ócio sofro seu assédio.
Perdi-me! Esta floresta é vasta e escura
À volta, diz-me o arbóreo sussurrar:
«Não avances! Não tens com que alimentar,
Insatisfeita tua alma insegura,
Ouve o verde rumor entre a folhagem
São palavras trazidas pelo vento,
Julgas que versos servem de alimento
Que deles nascem frutos na ramagem?»
Mesmo que seja coisa que liberta
Dando asas de ouro à tua imaginação
Ou saudável licor que te desperta,
Repito, não avances mais! Se avanças
Andarás mais perdido na ilusão
Teus versos não serão mais que lembranças.»
Minha veia de poeta,
Que me deu dias brilhantes,
Foram pérolas, diamantes
Num muito branco papel,
Como o mel a derramar-se
Como água a escapar-se,
De uma fonte inesgotável,
Catarata incontrolável.
Minha veia adormeceu,
Entre bétulas e amieiros,
Entre vaidosos salgueiros
Ouvindo as águas do rio,
À procura de outro canto,
Que lhe dê maior espanto
Qual do cisne, lá do lago
Do Norte, do canto mago.
Minha veia, sonolenta
Do cansaço citadino
Do esgotado sentimento,
Procurando seu destino,
Mas destino não procuro
Pois traçá-lo é meu dever,
Como rocha, rijo e duro
Creio mais no meu querer.
Minha veia, minha amada,
Meu martírio, gravo tudo
Não cobrir de verde manto,
Musgo, arbustos e mil flores
Não deter do tordo canto
Germinando em mim amores,
Florindo este ermo caminho,
Meu espírito feliz, sozinho.
Se tão perto escorre o rio,
Minha veia, meu amor
Não quererás encostar,
Teu ouvido à mansa dor?
Que não é dor nem é nada,
é somente outro existir
No aquoso discursar,
Que este rio nos tem pra dar.
Minha veia, fecha os olhos,
Guarda a calma mansidão
Escorre meu púrpureo sangue
Leva-o assim ao coração