É só um sono de Atlas que me invade,
A percorrer-me a espinha já curvada,
Eu lanço aos céus a minha prece alada,
E espalho pelo chão a Liberdade.
Tropeço a qualquer hora, num começo
Nesta manhã de rude Maio a meio,
Num sono de poeta, eu ponho freio,
Porque dormi-lo agora eu não mereço.
Tão alto como as ancestrais sequóias,
Meu sono atinge os píncaros do céu,
Mas invisível, penso não ser meu,
Como envergar nas mãos inúteis jóias.
Chegam-me os deveres como balas,
Bolas de fogo, laser, munições,
Nesta leveza mole de balões,
Não posso mais que a todas suportá-las.
Quero dormir na vida em pensamento
Perplexo, olhando as flores, saboreá-las
E com as minhas lágrimas regá-las,
Mudando a cor monótona um momento.
Se eu conseguisse em vento transformar-me,
E uivasse por entre árvores frondosas,
E refrescasse as flores caprichosas,
Deste sedento sono reformar-me!...
E ser gotas de chuva gotejando,
Na terra, desfazendo-me em pedaços,
Nos ferros, nas mansardas, nos terraços,
E inanimados rostos despertando.
Tornar-me indiferente, sem Poesia
Passar por entre a gente qual morcego,
A beliscar a escuridão do apego,
Que à noite amor lhe tem, ódio de dia.
Pesa-me este querer mais que um elefante,
Que esmaga a terra inteira onde florescem,
Nos versos, margaridas, e mais crescem
No céu a magna Sirius coruscante.
Eu sou Manfredo numa torre gótica,
Gritando à noite o que tanto fascina,
Enigmática, a Noite a fronte inclina,
E a Lua volve o seio, bela, erótica.
Quantas velas por fé, se acendem longe?
Quantos versos são escritos na procela?
Quantos medos se escapam duma cela?
Quantas meditações faz de mim monge?
Quantas almas penadas penam mais
De quem depena e, mais, sádico, ri-se?
Ah se ao menos Deus viesse e existisse,
Não fossem só imagens em pedestais!
Não faço mais que adormecer desperto,
Ouvindo, ao lado, as sonolentas vozes,
Despertam se zangadas, são algozes,
do meu amor, do mau humor liberto.
Nas horas gastas, secas, eu contemplo,
Igrejas e capelas, monumentos,
Em mim, guardo escarninhos e tormentos
De almas, sem Terra ou pátria, sem exemplo.
Terra sem rei, cidade de fantasmas,
Tristes árvores decrépitas e esquálidas,
Passam por mim espectros de mãos pálidas,
Enchem-me a mente e o peito de miasmas.
Dum ramo infecto vem um negro canto,
De obscenas frases quando a fêmea passa,
Com passos de loba bela ultrapassa,
Ouve-se, ao longe um cisne aflito em pranto.
Passa também febril velha leoa,
Passeando pela Feira das Vaidades,
Lobos e cães competem com verdades,
Mostram mandíbulas a uma pessoa.
E eu passo, passageiro em passo incerto,
Como descobridor de novos mares,
Fotógrafo das cenas singulares,
Que escaldam como areias do deserto.
Amo embrenhar-me em tudo o que não posso,
Embrenhar-me, como este poema é escrito,
No meu íntimo solto mais um grito,
Como um colar envolto num pescoço.
Minha alma é libertina, é desumana,
Caído fruto seco que não presta,
E só banhar-me em nada não me empresta,
Na arte, que ao mundo e a mim, muito me engana.
A ponte envolve o rio na cintura,
Luzindo jóias cor laranja; a margem
À volta, a citadina e bela imagem:
Ruindo ao longe a rouca criatura.
É neste sono negro de Kali,
Que finjo estar quieto e adormecido,
Mas tenho bem desperto o meu sentido,
Por não querer também ir por aí.
Tantas vezes me encontro a perscrutar,
O céu sem fim, sem decretado início,
A cura para meu terno suplício,
Que vem com boca ardente me oscular.
Mas, minha Musa, basta contemplar-te
E ter-te, qual jibóia, em mim, colada,
Para não lamentar meu sono em nada,
E tudo se converte à volta em arte.
Não sou o Sol que a Terra à volta gira,
Não sou nem prece ou bênção ao chão lançada
Não sou brilhante espelho, alma comprada
Que ao trato humano o tacto humano tira.
Beija-me uma vez por dia os lábios,
Manjares de poetas, de donzelas,
Que nuvens tão cinzentas são aquelas,
São pensamentos trôpegos de sábios.
E dá-me uma só vez. Em duplicado,
Terás o beijo doce convertido
Fulgor me nasce quando estou retido,
Nos braços teus maternos, sossegado.
Quase adormeço amontoar montanhas
De sono entumecido e de cansaço
Mas um só basta amor, teu quente abraço
Para abrandar a guerra nas entranhas.
É ter na frente a estátua em pedra e ver,
Calor do sangue humano encher-lhe as veias
É ter de imensos versos as mãos cheias,
E uma alma insatisfeita para os ler.