Quem pode andar seguro neste mundo,
Quem pode suspirar de alívio doce
Se erguendo, como onda do mar profundo,
Beijando praias como amante fosse?
Quem pode deter, certo, uma certeza
No vindouro dia de ouro de amanhã,
Fluindo, e ressurgindo com leveza
Que o poeta inspira e adorna a coisa vã?
Quem pode amar se sabe amar somente,
Sua imagem, num lago esclarecido,
Belo narciso, no entanto, demente
Por Eco, amado, este amor, devolvido?
Quem cego pode andar com o seus olhos,
Tapados por frívolo preconceito
Rompendo o sol nevoeiro entre os escolhos,
Se o cego pintor torna-se perfeito?
Quem pode cantar, rir, ler, ver, amar,
Temer, chorar, sorrir, dançar, tremer,
Saber na vida verbos conjugar,
Se nem sequer pode um verbo dizer?
Quem pode ultrajar pureza e esperança,
Com repulsa de verme ou vil insecto,
Que em si pureza, e esp’rança é já lembrança,
Penumbra e sombra sempre circunspecto?
Porque se vive o homem contrariedades,
Qual tempestade um lenho firme, encara,
Porque não se converte atrocidades,
Noutra arte mais suprema que alma ampara?
Ruge a natureza de implacável,
Feroz destino humano se encadeia,
Qual vivo inferno hediondo e abominável,
Desenha, à traça, a aranha em sua teia.
Que abismo em chamas, de infindável fundo,
Por inteiro, engole ávido um homem,
Lhe dando âncoras no alto mar, profundo,
Que as chamas desse abismo nos consomem?
Mas se polar estrela lhe valer,
Como um grandioso amor que tanto pode,
Sem interesse, amar, e amor ter,
Há quem nos espera, há quem nos acode.