Obriga-me esta negra fome, a sede
(por água ou vinho, pão disforme), a ir
À ilha parda, árida e não partir,
Para um lugar onde a minha alma mede.
Ó versos livres que escrever podia,
Póstumas obras deste Tempo intactas,
Ó nuvens brancas, outras vias lácteas,
Trazei dos céus a cor da poesia.
Que a tragam, nunca agrilhoada em ferros,
Qual Prometeu na montanha encerrado,
Sussurrem no seu ombro um bom bocado,
Livrando-me da morte dos desterros.
Suprimo a dor maior que inda é pequena,
Crescendo vai, da terra ao céu subindo,
Quebrando pétala duma açucena,
À loucura, à discórdia sucumbindo.
E o ter que acreditar que deus existe,
Sem nunca alguém ter visto um deus maior!
Por causa disto arde o meu mundo, e insiste
Um deus qualquer fazer mesmo o favor.
Dois lados, duas torres, duas margens,
Dualidade, enfim, aperta o peito,
Ao Homem de Babel, vãs linguagens,
Nascido para ser sempre imperfeito.
E tudo ter um fim, ter um início,
Ser durável no espaço, eu penso nisto,
E este meu pensar nisto é meu suplício
Ninguém, por pensar nisto, vive disto.
Reforma o verso, Musa, estende os braços,
Tem de Anfitrite o gesto, e sê o mar,
Que, calmo, beija; irado, assusta, em passos,
De canções tão antigas de embalar.
Converte o peso surdo em minha mente,
Dissipa, qual sol de manhã co ’ o vento,
O denso nevoeiro e imponente,
O verso seja a voz do sentimento.
E torna, o que inacabado, ao desleixo,
Quero acabar, e o Tempo não permite,
Outra vontade pois, sem ela, deixo
Que o tédio horrendo um ditame me dite.
A preferência absurda pelo absurdo,
Nos diálogos, nos ditos, nas conversas,
Torno-me entre a gente cego e surdo,
Inverto-me nas almas mais inversas.
Acorda, ó alma ignóbil, desatento,
A tanta variedade que há na beleza,
Não fico dela surdo e cego, isento
De amar escutando a voz da natureza.
Querendo a sintonia tão perfeita,
Como estar preso em solo fértil de alma,
De alguém, próprio de si algoz, que aceita,
No incerto trilho, quem aspira à palma.
Olhando e respirando, e assim, guardando,
Tudo o que em mim couber de tanto encanto,
Qual ave em minha mão se alimentando,
Olhar pequeno com piar de santo.
Já basta de haver dúvidas quem eu possa,
Ser, se alguém melhor do que eu conhece-me,
Névoa que no rosto paira e roça,
Nimbada e bela Musa: reconhece-me!
Porque transpiro o suor do sofrimento,
Tropeço nestas pedras tão pensantes,
Impressos nos meus versos num lamento,
Sem corações sofridos, palpitantes,
Ao desespero entregues, tão perdidos,
O escuro tacteando, onde a alva estrela,
Polar, guiando vai os mais sofridos,
Por quem a noite arcana encerra e vela.
Por entre as folhas secas pelo chão,
Vejo um destino certo, uma fadiga,
Os olhos oprimindo uma ilusão,
De haver Amor no seio duma amiga.
O horizonte vejo, o sol descendo,
A luz escurecendo, o tombo igual,
De Apolo, íngreme queda, esmorecendo,
No seio azul materno ocidental.
E as grutas, as cavernas, os recantos,
Do mundo, escuros, ignotos, se abrindo
Saindo vão outras vozes e encantos,
E a voz vai no meu canto... sumindo... e indo...