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POESIA ÀS ESCONDIDAS

Poemas escritos por António Só

A nova ordem

Novembro 17, 2023

conseguimos ver as cuecas ao mundo
cor de sangue inocente derramado.
faz o pino, verás a verdade na imundície
a segurar o filho morto resgatado do entulho

os direitos humanos são desumanos
sementes de ódio lançados nos extensos
campo de cinza e fogo, no futuro longínquo
estaremos a engolir o creme do crime

a nova ordem é a velha, inalterável
a chuva é um bem essencial numa prisão
de frágil segurança, a morte supera-se

este acto de matar a raça é o fio de baba
que sai pelos cantos da boca decadente
do líder decrépito da nação jovem

O Fantasma da Ópera

Setembro 29, 2022

sou gemido de violoncelo desafinado
partitura rasgada no lixo de Brahms
se o amor me quer Fantasma da Ópera
danem-se o Fantasma e o amor
têm algo em comum na existência

o cão verbaliza bem a minha raiva.
por um instante, o gato não foi
conto de Egar Allan Poe por um triz
é preciso termos bainha feita
na paciência de lavrador.

entrou de rompante em palco o
Outono implacavelmente melancólico
eléctrico, proibido alinhar-se
Agulhas, vespas daninhas
Que diariamente zombam de mim

Nasci com o talento de não ter talento
feito para ser o que não foi feito para ser
hospedei-me na carruagem velha
onde vão príncipes que pensam que Proust
jogou no ataque de clube de futebol

algo desligou a ficha do amor
acontece. dei um pontapé na quina
do móvel na temperança, soltei
o impropério impróprio para alguém
que no espelho não sabe ler nas entre linhas

 

As cidades

Outubro 14, 2021

 

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Não queria entrar na repartição dos sonhos

dormir é morrer com a consciência
um fósforo rasgado de luz efervescente
na noite eterna dura pouco como nós

não dormimos o sono que desejámos
premimos botões errados no desconhecido
escrevemos cartas brancas sem memória
copiamos solilóquios uns dos outros

as ideias dão-se à manivela, amassa-se
o pensar, desistir é destrutivo, impreme-se
a ideia de sermos luminosos poetas
as cidades que sonhámos nunca irão erguer-se

chegarei a ver o rutilante templo
pinturas de crepúsculos no céu pela janela
não dou ao verso aquela palha
a manilha não é certa como um ás

não quero dormir no colchão do tempo
cheio de pulgas e remorsos, durmo de dia
na folha de alumínio ao sol de um poema
babuíno saído da árvore do pensamento

Relatório de contas

Setembro 22, 2021

justiça.jpg


A triagem selectiva das palavras

leva-nos ao início acidental do precipício
as perguntas postas à natureza sábia
não dariam sequer para entendê-la

o ócio no ofício, o consórcio do bulício
da cidade, chaminés, toxinas, fumo
o clangor fleumático do fervor metálico
o labor langoroso da cratera do vulcão

a nova ordem mundial do fogo
a noite incendeia-se de lava e enxofre
a pirotecnia do amor vulcânico
oposto ao matrimónio olímpico

casas novas erguidas no solstício
em ruínas devastadas no equinócio.
as locomotivas incendiárias a epiderme
queimada dos campos, a terra quebradiça

enviai-nos novos males diariamente
como a dieta perigosa da calota polar
está a dar que falar de polo a polo
entre especialistas sem especialidade

cada vez há mais Confúcios gafanhotos
com as patas em cima da sabedoria
confundem-nos confundem-se confusos
confuciamente

mirmidões, fazendo pisca, elétricos
na peregrinação diária de alumínio
rumo ao quotidiano com cheiro tóxico
morrendo sem ter-se renascido.

ardemos como madeira, carbonizamos
gargalhadas que não queríamos dar
as mãos que apertamos pertencem
aos pescoços que gostaríamos apertá-los

temos sempre as navalhas prontas nos bolsos
o bom dia anunciado soando a desafio
a recepcionista vê-nos pelo periscópio
interior mais pontente que o imaginário

ela sabe que eu sou daqui mas não
sabe que não estou aqui, ela desconfia
que um dia irei falar-lhe de poemas
que fiz e desfaz o olhar, virando costas

nunca seremos o que desejámos, conheço
duas pessoas que foram o que desejaram
precisei mascarar-me de sonho realizado
sem ter realizado sonhos de qualidade.

a realização de sonhos é um diálogo
com buracos negros bem nutridos
de planetas gordos prontos a comer
num curtíssimo espaço de tempo

pegamos na foice, a colheita inicia-se
nunca colhemos o nosso trigo
o sonho não comanda a vida pelo menos
comigo, confesso, o mundo foi mais forte

muro alto, vedado, com vigilância apertada
para lá entrar é preciso saber de física
quântica dos leopardos na época
de acasalarem cem vezes ao dia

há bons cartazes publicitários com
membros, vendem-se bem, só lhes falta
dizerem-nos o preço no banco de trás
enquanto nos roubam de frente.

inveja é isto, admito, sinto inveja
deste piriquito que canta perfeitamente
da colina que se acende quando o sol
o fustiga, a serpente desenhada no rio

a migração dos pássaros, mesmo os ninhos
de milagrosa engenharia, lama a lama
palavra por palavra, sonho a sonho
jogo a jogo, peça a peça, passo a passo

pulso a pulso, asa a asa, dia a dia
voo a voo, espaço a espaço
lanço a lanço, sem gruas e guindastes
sem arquitectura ou humana mão

sábias constroem poemas mais perfeitos
que os meus, os meus são interrompidos
pelo depósito da gasolina, o chicote do
relógio no pulso avariado de precisão suiça

meu pai bem me avisou quando me dizia
"dança-se consoante a música", mas isto
é para quem não gosta de música, ou para
é para quem à noite chega uma sopa quente

segundo por segundo poderia construir
avenidas largas cheias de lojas e luzes
Ou parques cujas sebes conseguem figuras
geométricas de mágicos enigmas

estas dores de cabeça começaram
mais ou menos quando fui atirado ao caldeirão
e percebi que me arrancariam a flor do peito
que me recusava oferecer com fogo e fúria

de imediato vieram coisas contra mim
dissabores, desamores, intrigas, casamentos
traições, revelações bizarras e no absurdo
erguia uma cidade de poemas abertos

sem cercas sanitárias, sem canhões de água
sem corações bélicos e vampíricos
sem espíritos licantrópicos, sem
bailes de gala de gárgulas de gula

e no fim pedirei contas a mim póprio
voltarei ouvir a voz aguda e cristalina
da minha tia que me dizia para pensar
na noite plena em voos de naves da Galáctica

imagens desfeitas em fumo e ar
abóbodas estelares com projector de imagens
tempestades, lembro-me que o raio caiu
à beira do meu pai, num lamento elétrico

porque isto de existir é contabilidade
faz-se o balanço definitivo e saberemos
onde tirámos proveito, onde aproveitámos
onde se gastou e perdeu tempo, faz-se o somatório

onde a vida nos mordera, degastara, e conseguira
enjaular-nos no circo como animais exóticos
para haver vida é preciso sangue
derramado no relatório de contas

Tempestade

Setembro 14, 2021

 

Lá fora aplaude-se efusivamente de pé
o líquido rumor principia, desprende-se
do céu o primeiro pedregulho

Relâmpago!

o céu dá um murro em cima da mesa
estremecem janelas, árvores agitam-se
o sol apavorado fugiu entre as nuvens

Relâmpago!

as águas gritam mágoas, há pouco sentia-se
o sol de setembro de chapa de zinco
estalar-me no rosto sereno de azul

o segundo pedregulho rola pela colina
do céu, ouve-se, no cálculo da
multiplicação do som longe ou perto

Relâmpago!

a tempestade vai morrendo ao longe
as pessoas vão saindo da sala felizes
e os aplausos vão cessando lentamente

no camarim meu coração é triste


 

Poema apagado

Setembro 14, 2021




Somos frágeis, estamos todos
metidos na nevrálgica incubadora
de notícias trágicas que nos chegam
do mundo desconhecido

gente que definha de fome
enquanto rebentamos de comida
gente afogada em dilúvios bíblicos
depois do relaxante duche vespertino

há um programa de reeducação em curso
obrigam-nos a usar máscara e tédio
o fascínio elástico imperativo
na agenda escreve-se o petisco do ódio

a solução é diluír-nos
num copo de mar primeiro azul
depois virá o crude e assim alteram-nos
a composição química do peixe

ainda não declarámos insolvência
no restante tempo, afinal
não falta muito para ir-se à Lua
dizer adeus ao planeta terra

há feiras do livro e das vaidades
intransigências poucas, suicídios vários
sem bilhetes escritos de despedida
da existência caótica e frenética

há cada vez mais gente que escreve
declarações de independência
individuais, a irreverência
de deixar-se o poema resolvido

caiu-me das mãos a jarra de cristal
da perfeição das coisas, via-se
no chão um corpo estilhaçado
do passado feito em cacos

ponho moeda no parquímetro
tiro bilhete para prolongar-me os anos
desperto e estacionado
no parque da feira desta vida


 

Feliz 11 de Setembro, meu amor

Setembro 11, 2021

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Depois da despedida

as lágrimas reprimidas
a nudez na penumbra

o teu país tricolor era triste
ficou mais triste o meu país
porque minha pátria eras tu

quis mudar a legislação
e os estatutos do universo
rejeitava não ver-te nunca

mais contigo eu existia
éramos um círculo de fogo
na clave de sol no azul

no meu país as árvores não existiam
as flores estiolavam
e os pássaros adoeciam

não via nada fora de mim
olhavam-me teus olhos verdes
no coração que ficou contigo

és a mais bela criatura
teu rosto luz como um vitral
de igreja alegre e colorido

agora posso estender-te a mão
meu amor, vivemos juntos
como marido e mulher

 

pretérito mais que imperfeito

Setembro 09, 2021

Sou pretérito mais que imperfeito
consigo esquecer-me das chaves do coração
tropeçar na vida instável sou perfeito
vivo a pedir esmola às portas do perdão

na passagem de nível sou desnível
vazio arqueológico ao vento descomposto
mais valia tirar um curso de ventriloquia
e a voz que se ouvisse fosse a voz do desgosto

fazendo o balanço dos anos que passaram
germinaram-se algumas coisas perfeitas
cumpri compromissos que me encomendaram
não desisto sequer das coisas desfeitas

sou feliz a traduzir os voos passageiros
das aves reunidas que buscarão calor
que esta linguagem simples é mais acessível
que traduzir incontáveis tragédias de amor

amor, de conservá-lo estendo-me ao comprido
adivinho que virá no amor o senhor doutor
explicar-lhe-ei o teorema deste sem abrigo
no poema que escreveu rimou amor com dor

a cidade está bem para os príncipes perfeitos
turistas temporários ricos e banais
I love Lisbon so much, porém os benefícios
aos autóctones cravam-lhes agudos punhais

continuarei escrevendo até que a alma me doa
a doer-me não mo negue o tempo que me resta
sou fífia de trompete que na música destoa
inflamável lixívia que o ar macio empesta

sou valor residual das vezes que errei
troquei débito por crédito vírus no balanço
sou juro insustentável que nunca sustentei
sou raio de luz a reflectir no espelho baço

sou mágoa de verão, sou máxima de outono
aforismo de inverno, sou sombra que passa
sou anti matéria negativa monótona
batimento cardíaco que descompassa.

sempre escrevi às escondidas a criança
reconhece-me na rua sabe quem eu sou
na pálpebra descida da peça de teatro
sou cortinas fechadas no sítio onde estou

já não sou a casa branca na colina
nem príncipe mergulhado no seu ócio
sou agente inibidor da endorfina
sou morcego aturdido no equinócio

 

Na casa antiga

Setembro 04, 2021

O relógio de parede da cozinha
parava mal humorado
nem pilha ou palha o burro
nunca dava as horas que eu queria

naquela casa era sempre tarde
mesmo quando ainda era cedo
o ar fabril fazia-me mal
tornava-me lúcido com dores de cabeça

éramos felizes e não sabíamos
o volte face de dezassete anos
encontramos uma pá e escavamos
um buraco fundo de saudade.

éramos tímidos mas príncipes
belas criaturas alheias
às fantasias que inventavam
sobre nós criaturas terríveis

e deste lado curvo-me na distância
oiço ao longe o ladrar do cão
no escrínio antigo guardava
poemas escritos com gritos de séculos

sou capitão do barco deste corpo
prometido à terra desde que nasci
generosa ainda não reclamou
o voucher que lhe pertenço

incógnito sinónimo de anónimo
não fui a tempo tornar-me mestre
mestre na sina ser poeta
guia turístico do meu destino.

tenho pensado no rodopio
do infinito, pião que gira no
chão do universo pune-me
esta esfera mágica de tão bela

Ingratidão

Setembro 02, 2021

O estômago decide os horários por ti
retira-nos 2 horas por dia, esquecemos
que o estômago comanda a vida
e o sonho foi pôr-se no pôr do sol

coleccionamos dores de dentes e otites
de palavras arremessadas uns aos outros
chamei-te maluco por achares que a teoria
de Darwin era filosofia de macaco.

invejo domadores de leões sem selva
ligam à tomada o perigo de morte
correm o risco de saírem ilesos
do amor entre animal e homem

em cada mulher um manicómio
sai-se de lá pior do que estávamos
em cada homem um presídio
saímos de lá sem reabilitarmo-nos

Há mulheres que nos levam pela mão
atraem-nos para um beco escuro
roubam-nos o coração e depois
deitam-no fora sem saber o que fazer com ele

Aspirações

Setembro 02, 2021

 

Gostava que meus versos fossem autênticos
desfiles de moda de vanguarda ou
peças de roupa que outros pudessem
vesti-los e usá-los com a echarpe do sorriso

ou antigos pergaminhos que andassem
de mão em mão como bilhetes secretos
alusivos ao cómico humor do momento
recreativos ao trágico amor dolente

gostava realmente que me vissem o rosto
extraindo sangue do poema conclusivo
da infecção no peito que a solidão imprime
música dispersa no vazio deserto invisível

gostava que meus versos suavizassem
as minhas dores de cabeça irreversíveis
óleos balsâmicos dos músculos e ossos
piano de Chopin poético, doente, triste

que fosse pão embebido no café
da manhã como fazem os velhinhos
trazendo-lhes a infância longínqua à boca
por não haver outra via ficar-se perto

e que houvesse silêncio das aves
quando dormem de cabeça debaixo da asa
ou no parapeito da casa abandonada
onde ninguém pousa a não ser a vida

 

Proibido ser

Agosto 28, 2021

Poucos são os que transgridem nas emoções
todos temos o elástico equilíbrio de ginásio
a doença física, o juízo enjaulado
a satisfação nivelada, o prazer contido

extrava-se pouco, entra-se na sombra sem
espreitarmos a loucura a vestir-se pelo
buraco da fechadura, sem rebentar-nos uma veia
no cérebro, de sonharmos a liberdade

activam-se contas de coisa nenhuma espia-se
para activar-se a inactividade
consolo-me com poemas escritos
conseguirei erguer cidades com dois dedos

passo de óculos escuros na espontaneidade
mantenho-me vivo assim, fora de mim
porque dentro a desconstrução persiste
vou disruptivo, que o dia me seja desigual

conheces-me, meu amor, a voz expande-se-me
equilibra-se no eco inicia-se na viagem
como se flutuasse num tapete persa guardado
numa arca de contos mágicos de noites de insónia

as luzes dos candeeiros têm contos góticos
há nos repuxos autênticos festivais da canção
cristalizações de pausas desfeitas enroladas
num antigo pedaço de tecido e de saudade

por favor preciso sair à rua e encontrar
um trangressor do tempo que me conheça e
me conhecesse do passado e me visse com meu pai
levando-me seguro pela sua mão firme

um senhor sentava-se e enrolava um cigarro
no início parecia-me desenhador de mapas
criador de miasmas, pintor de metáforas
mas expelia fumo como soprano de silêncio

poderia sacudir o unicórnio que sonhara
recreá-lo num mármore em bruto e exibi-lo
numa galeria ao relento numa vila risonha
e mágico colocasse um sorriso na mulher

já apanhei comboios a meio de uma conversa
costumo adormecer em bancos do jardim em
pensamento, sempre que me dão o currículo
das veleidades íntimas de rasa superfície

já me atirei de paraquedas em entrevistas de
trabalho, fiz bungee jumping em discussões
sobre política, suicidei-me à porta de lojas
de artesanato, sou recenseado em Saturno

tomei comprimidos para dormir em cinemas
onde filmes histéricos atiram-nos latas de tinta
atiram-nos de penhascos nos ouvidos
apunhalam-nos com picadores de gelo nos olhos

não digas a ninguém, meu amor, mas sinto-me
que me meteram num foguetão e viajei à lua sempre
que me falam de como o mundo devia ser
se digo a verdade calam-me com mentiras

 

Em sentido inverso

Agosto 26, 2021

 

Não quererei ver a alegria contra a parede
a ser algemada por crimes que não cometeu
a lógica tomou um comprimido para dormir
flutua num sonho de máscara e seringas

tudo é a 50 por cento, filtra-se o cheiro
de pinheiros no verão quando se banham
ao sol e ao fogo, este a 200 por cento
vai alastrando, querem-no desconfinado

se ao menos vivesse para sempre
andaria na terra para ver a mentira de hoje
porque a verdade será encontrada por
arqueólogos e proscritos numa vala comum

atiram-se boias e gibóias em simultâneo
emigra-se a caminho da nova escravatura
agora vendem-se nas bancas digitais
fábulas verdadeiras de alienígenas

vai-se caminhando, teme-se o pior
viajei para longe, fui até ao pátio
espretira se o sol era igual e senti frio
ando ao contrário do aquecimento global

na roda da mundo a mão insana que a gira
a mão que domina o sentido dos ponteiros
o céu não tirou o capacete azul e as nuvens
são farrapos de um velhinha sem reforma

vai-se agarrando as regalias pelos cabelos
o ódio solta-se num simulacro mudo
pensar descabido julgarmos que
o senhor do mundo é bilionário

mas o senhor do mundo é o Tempo esse
levanta as saias à justiça e
beijando na boca as memórias antigas sem
fazer barulho, rato que progride

a serpente voltou a entrar no paraíso
vivemos num circo histérico estéril
ficando numa fila, pensava que ficaríamos
no eterno à espera de sermos atendidos

Não desfaças já as malas, Eduardo é possível
que o tempo de usar cabeleira e terror volte
há novas bases de dados e há dádivas novas
pelo sim pelo não apaga as luzes de presença

 

O vírus

Agosto 24, 2021

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Os dias repetem-se, o solo seco assume
a pele encarquilhada de elefante o mar
esse coloca-nos a questão se subirá de tom
no diálogo imprevisível entre Homem e Terra

não estaríamos perto do precipício se não
houvesse perigo, assume-se que o homem
é praga que se pensa ser tratada com
histeria, culto da morte medo e tecnologia

bem sei que o desafio existe para ser ven-
cido mas o desígnio das castas invisíveis
é superior às nossas vidas invariáveis
quer-se um produto futurista, um herói robot

sairemos vencedores, mas seremos leopardos
comendo nas árvores sozinhos seremos ilhas
indivíduos feitos de papel que se amarrota
servindo reciclável de combustível à medicina

existem mordomos e porta vozes da natureza
encarregaram-se do susto, pânico, do terror
as coisas dizem-se de maneiras diferentes
mas os sonhos anulam-se nas mágicas rotinas

Ela que fala na linguagem das marés eclipses
degelos dilúvios tempestades tornados
fala por si própria sacudindo água do capote
como o meu pai, só nos avisará uma vez

 

Alien

Agosto 19, 2021

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A password passou a ser vacina

entra-se na liga dos Campeões com
formulário em branco sem doença
divaga-se muito sem saber

é hora de encravarmos o tempo
adivinha-se anómalo e bicéfalo
invulgar como se invertessemos a chuva
e a terra girasse em sentido inverso

iremos por corredores de teatro em ruínas
imundo de opressivo cheiro a urina
carregado de mentiras e ácido sulfúrico

viu-se como cegos nos tornámos ao
determos nas mãos a verdade incómoda
revelada num auditório de assassinos

Ágora

Agosto 18, 2021

Estive alguns anos preso ao romantismo
falávamos disto nos fins de tarde sempre domingo
perdíamos a noção do tempo tendo por amanhã
garantido, oposto ao presente, hoje futuro

a caligrafia poética prendia-me a atenção
tentava absurdo desenhar com escrita casta
coração selvagem, ainda puro, ainda limpo
não gasto, suavíssimas linhas de inocência

tragam-me silêncio, absoluto, copo de absinto
alucinação do poema áspero que deslumbre
somente perturbadas almas pelo sono ambíguo

poderão vir bater-me à porta se desejarem
nos dias que estarei a estender versos molhados
ao sol da minha infância, ao sol da juventude

Afeganistão

Agosto 18, 2021

 

Chegaram os estudantes da tortura
esmagavam flores ao invadirem as ruas
com suas botas negras ensanguentadas

distraídas as crianças faziam desenhos
foram-lhes retiradas das mãos à bruta e o choro
seria a única música que conheceriam

não se viam mulheres na rua
haviam sinais de proibição de mulheres na rua
caminharam séculos dentro de casa

de um lado para o outro, enlouquecendo
pensando se o suicídio seria sábia solução
ou sonhando que um dia apanhariam sol

numa praia de rostos dignos e compostos
em público mergulhando livremente no mar

 

O ciclo do medo

Agosto 11, 2021

Ando a coleccionar Apocalipses e Armagedões
cromos de abomináveis cavaleiros míticos
vulcões de tamanhos s, l e xl
a ver se consigo morrer antes do tempo

conspiro contra conspiradores
com os que negam conspirações também
sobra-me tempo e querer vivê-lo
é viabilizar o medo incoculando-o.

o medo genuíno é mendigo de andrajos
famélico sujo a bater-nos à porta
ultimamente saio pelas porta dos fundos
o medo assemelha-se às seguradoras

quando era miúdo sentia medo do meu pai
sentia medo da minha mãe, da minha avó
da professora da escola de miúdos terríveis
das auxiliares com sangue nos olhos

medo de beber água fria, comer laranjas
à noite, dizer mal de Deus, comer moscas
andar nu na estrada, vai-se por um caminho
não poder sequer rebentar os miolos à vontade

desde que nasci lembro-me que um dia

experimentei não ter medo, foi um erro
tremia por respirar livremente desconfiei
e senti medo, logo sou cidadão do mundo

proíbe-se tudo, andar a pé, de carro
avião, comboio, eléctrico, de mulher
de minotauros minorcas em lojas
com acrílico aqui acrílico acolá

preciso de certificado da minha existência
pulmonar, da doença, do pânico, do susto
fui multado por amigos por fugir à seringa
esquartejado em pedaços nas opiniões.

deve ser bom ir à Lua e ter dinheiro para
girar o mundo inteiro com as mãos sujas
invocar-se o vómito, a matéria imprevisível
ser de carne osso, votivo ao medo.

Não queria dizê-lo, mas repito: mandem-me
doses gordas de medo até que Fobos trema
fiz uma lista de tragédias gregas que podiam
acontecer-me no corpo e cheguei ao infinito

há especialistas do mundo que parecem putas
nas esquinas a pedirem-nos lume e medo
não me disseram quando nasci que devia ter
medo, medo, medo, medo subsequencial

não me explicaram que os andaimes da terra
iriam ruir-nos em cima como sempre fizeram
os mares subirão de tom como sempre fizeram
os céus irão engolir-nos como sempre engoliram

um índio dos antigos quando encosta o ouvido
à terra, não é o trotar de cavalos que escuta
mas sons metálicos que nos furam os tímpanos
rios caudalosos a metamorfosearem-se em ouro

há países fumadores que nos dilatam as veias
entopem-nos as artérias, envenenam os ares
eu que não fumo obrigam-me a deixar de fumar
eles continuarão a fumar cachimbos gigantescos

o vírus, a pandemia, o horror, a calamidade
a zaragatoa, a pandemia, o horror, o cata-
clismo, o autoclismo, o pânico, o plástico
o vírus, a pandemia, o horror, a jaula

a última vaga pior que a primeira o vírus
multiplicado por línguas de sangue cíclicas
da chuva, a nossa existência a crédito
a verdade ser mentira, no fundo, o medo

Ressonância Magnética

Julho 26, 2021

 

Queria que houvesse um terminal
só para a locomotiva da tristeza
onde saísse assim que desejasse
longe da composição solitária

não consigo ser finitamente triste
esbarro nos muros impalpáveis
faço birra por vezes com o tempo impuro
chamando um táxi ao desconhecido

Avançando a tristeza passa-me à frente
apetecia-me dizer-lhe: “olhe, desculpe,
“minha senhora, eu cheguei primeiro”
e civilizadamente me respeitasse

tudo é pão no forno quando toca
a fermentação das tristezas insondáveis há
nesse jogo da cabra cega
uma cabra longe de estar cega

a tristeza do Álvaro não era fingida
antigamente não diagnosticavam maleitas
hoje cada poema é uma ressonância
magnética onde nada se detecta

outra trotineta deitada ao chão
pareço eu quando sinto que maldizem
do que faço ou sinto, do que sei ou não sei
pista de obstáculos na vacuidade

hoje andamos com a cátedra no bolso
pequeno toque tique high tech
chamam-me do lado de fora, da realidade
ficaria mais tempo se pudesse.

estou de novo triste

 

O mendigo

Julho 18, 2021

Há poetas que escrevem
Os livros que leram
Mas só pretendo ler
Os que viveram
Deveras.

Cada verso é uma
pista de obstáculos
Os versos imortais
Têm milhões de tentáculos

Recebeste a mensagem
De um livro escrito
Por um mendigo
Desconhecido
Sem abrigo

Pouso o livro, é de noite, saio à rua
Alguém pernoita à porta dos correios
Um dia pergunto-lhe se quer petiscar
Uma sandes de presunto e devaneios

Passei e vi que cosia com agulha e linha
Tinha a vida rota
Joelhos esfolados, telhado infinito
Que destino déspota

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