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POESIA ÀS ESCONDIDAS

Poemas escritos por António Só

A Cidade

Novembro 19, 2010

Tudo me delicia pra manter-me vivo,

Anónimo, soturno, bebo mil imagens,

Como um licor ardente, torna-me cativo,

Engulo avidamente rostos e paisagens

 

Será mais tarde um filme visto mentalmente,

As coisas têm o lacre agudo da saudade,

Não sei porquê costumo gravar geralmente

Máximas que gritem Amor e liberdade.

 

Na frescura das manhãs, do alto monte vê-se

As povoações cobertas de neblina branca

Parece que vivemos nas nuvens; parece

Flutuantes sonhos que a vida nos arranca.

 

A rapariga fuma à porta de uma loja,

Para matar o tempo acaba por matar-se,

Minuto a minuto, a sua boca enoja

A arrogância no olhar denuncia adorar-se

 

A idosa mal vestida, imunda, esfarrapada,

Emana um cheiro infecto, odor da podridão

Altiva, uma mulher passeia abençoada

Pela beleza só; pela Virtude, não.

 

A jovem rapariga no comboio à tarde

Espalha uma fragrância doce por encanto,

Homens, cheirando a vinho, sem fazer alarde

Apalpam-na com fogo nos olhos, a um canto.

 

Complexos de alumínio e vidro me parecem

Meu dédalo mental de música e de versos,

Beijam-se dois homens – que ternura – esquecem

Os olho que rotulam de doentes e perversos.

 

Estão certos. Este beijo é o século vinte e um.

Prefiro flores, música, Arte e Poesia

Não me formei doutor, não tive jeito algum

Mas falo ao mendigo com igual simpatia.

 

Ouvem-se sirenes, a canção do pânico,

Sinfónica, a cidade tem espasmos de inferno

Intrusos, entram sons metálicos, mecânicos

Matando o que de mim é calmo, puro e terno.

 

Como painéis ruidosos digitais, complexos,

Secam com avidez as tetas da mãe-terra

Chegam-me aos ouvidos sonhos desconexos

A vida é uma flor na lama que se enterra.

 

Viver é estar na fila à espera impaciente

sinto um tigre no estômago a rugir de fome

Morde os glúteos firmes de quem está à frente

É uma senhora fina que lhe ignoro o nome.

 

Deixo-me embalar no vento repentino,

Levo a mão aos versos dentro da algibeira,

Corro a enganar as ânsias do destino

como as águas da chuva inundam a ribeira.

 

Nos dias em que o céu é azul, imaculado

Guarda o rebanho plúmbeo de nuvens cativo

Dos rastros de fumo dos aviões, riscado

O céu é um tabuleiro de xadrez festivo.

 

A calvície dos choupos, plátanos que soltam

Folhas outonais, varridas pelo vento,

Meus olhos consumidos pelo Outono escoltam

Imagens sepulcrais que inspiram desalento.

 

Sobe a melancolia! A canção do crepúsculo,

Canta-se nas ruas cânticos de pressa

Rugem autocarros, carros, sou minúsculo

Pudesse ser árvore que vive sem pressa.

 

Ouve-se um comboio; passa como a cobra

No milheiral de rostos, braços e cabelos

O dia mais um pouco de sono nos cobra

Desenrolando à noite cansaço aos novelos.

 

Olho, entre a folhagem, vagamente, espreito

Das árvores esguias, o sol infantil

Brincando de arco e flecha, acerta-me no peito

Para lembrar-me o quanto sou frágil, inútil.

 

Fere-me os ouvidos a canção do pobre,

Morde-me o metal batido, martelado

Mata-me a ganância dum rico que encobre

A luxúria em que vive de putas rodeado.

 

Cordões policiais, armados de bastões

E escudos, como em tempos temíveis espartanos,

Do outro lado tigres, lobos e leões

Com ódio, paus e pedras aliviam danos.

 

E quando a noite cai, e quando a Lua sobe,

Ao vê-la retocar a sua maquilhagem,

Aplaudo o strip-tease quando atira o robe

Pra longe, e de luar, ilumina a paisagem.

 

Antiga como o Tempo, um relógio celeste

Nocturno, como triste cuco abafa a dor,

Caminha, majestosa, em direcção a Oeste,

Como se lá estivesse à espera o seu amor.

 

Acendem-se luzes sombrias nos subúrbios

De cor alaranjada, lúrida e fatal,

Como se ardesse um lume; ouvem-se distúrbios

Ao longe, me parece que lá dorme o Mal.

 

Curvo-me perante a dádiva da vida,

Finco as mãos nas curvas ancas deste mundo,

Até que a minha alma flutue perdida,

Até que solte o último suspiro profundo.

Soneto sem Receio

Novembro 16, 2010

Quem me prendera as mãos da minha alma,
e me quer ocioso, vago, insensível
Tornar meu mundo um sítio inacessível
Que me consola, mima, que me acalma?

 

quem foi que a mão meteu na algibeira,
e me furtara um verso nunca dito,
eu sabia que devia tê-lo escrito
Num tronco enegrecido de oliveira.

 

Agora, aos bolsos levo as mãos, tacteio,
Mas há um poema escrito no teu seio
Que eu quero, por demais, desenrolá-lo,

 

como ter crença ou esperança necessito
Gritá-lo ao céu, às estrelas, ao infinito
Para que um dia possa, enfim, beijá-lo

Soneto Contra o Tempo

Novembro 11, 2010

No meio deste rir sem ter vontade,
Nesta vida fechado num cubículo
De ar seco onde se aperta mais o círculo,
Confesso que não voo em liberdade.

 

Ser livre, imune à ânsia, a esta saudade,
Deixando-me tão preso ao meu passado,
No início doce, agora, um bem pesado
Como se visse o rosto da verdade,

 

Na esqualidez do quarto como à espera,
Que alguém a venha ver, tão bela e crua,
Que alguém beleza encontre no seu rosto,

 

Teimosa a vida empurra e desespera
Quem pode vê-la bela como a Lua,
Se corro contra o tempo! Que desgosto!

A Verdade

Novembro 05, 2010

O céu azul macio convida-me a sair,

A rastejar pra fora da escura caverna

Onde há tão poucos rostos raros a florir

Como a mulher que pousa a sua mão na perna.

 

Podia ser pior o meu anonimato,

Não ter carisma iguala a não escrever poemas

É ter mais que uma pedra dentro do sapato

É viver na luxúria longe dos problemas.

 

Rostos, poucos ficam, muitos por nós passam

À frente como o tempo, atrás como o Verão,

São memoráveis dias quando se entrelaçam,

Dedos que nos tocam a lira do coração.

 

É triste envelhecer, minha senhora! Eu sinto

Que essas imprecações que vai soltando ao vento

Foram frases bebidas num copo de absinto

Por não ouvir a voz que vem dum sentimento…

 

É como ler o livro, A Dama das Camélias

Sofremos por amor poético e vazio

Num jardim de glicínias, túlipas, gardénias

Sente-se as fragrâncias doces como o cio.

 

Mas estes rostos fazem parte de uma vida

São páginas escritas no branco papel

Enigmas de uma alma que nunca foi lida

Há quem o amor amarga a boca como o fel.

 

Falíveis somos, nós que de tudo tentamos

Par dar um sentido ao que não faz sentido,

a preciosa vida é um dom que resgatamos

À criação de autor anónimo, desconhecido.

 

Há quem se reconheça num copo de vinho

No fundo da garrafa ou no alucinogéno

Ou a fingir que vai num bando de estorninhos

A melhorar a sua bomba de hidrogénio.

 

Pobre de quem se julga um deus vivo na terra,

Iluminado, eleito, semi-deus ou nada

Ou quem julga trazer a paz levando a guerra

Por não sentir-se amado pela sua amada.

 

E fala com o fogo a sair-lhe dos olhos

Mas se encolhe ao ouvir rugir feroz pantera

qual ave nascida na fúria dos escolhos

Que pobre de espírito viver como uma fera.

 

Misturo-me no sangue turbulento e rubro,

Percorro as entupidas veias da cidade

E nos túneis sinistros é quando descubro

A insónia da mentira e contemplo a verdade

 

E exclamo «que loucura é esta de viver»

Até ao último instante, em frente, prosseguindo,

Um túnel, uma rua, um rosto, sem saber

Se atrás vem uma sombra escura me seguindo

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