Tenho defronte a imensidão na tela
Pinto nela o retrato dum proscrito,
Que não se cala e julga a vida bela,
Dançando um Quebra Nozes no infinito.
Preparo agora amor a minha herança,
Nas horas superiores de cansaço,
Concede-me num instante, cisne a dança,
Nas águas transparentes. Um terraço,
No mundo onde escrevesse a vida inteira,
Numa hora apenas, só, num verso apenas,
Um eco a propagar-se na certeira
Eternidade. Actor em várias cenas
Dentro de Vénus estar apaixonado,
Cismando ver o filho adolescente,
a aljava esvaziar das setas, dado
Às contradições ásperas da mente,
Alívio que se eleva e leva o vento,
Canções que nunca cansam de se ouvir,
Estalar dum copo do meu pensamento,
No chão escorregadio de sentir,
Deixa-me ver o que não posso ver,
Agora neste instante em que passamos
No teatro humano, deixa, deixa ter
O mais que nesta vida suspiramos,
Um sopro agudo e mágico de alívio,
Dois corpos nus sinceros sem sarcasmo
Cativo o desprender do seio níveo
O espasmo sincopado dum orgasmo,
O ritual igual depois que estamos
Metidos nos lençóis, comprometidos
No amor que cisnes juntos nós dançamos
Condenados, anónimos, despidos
Na sombra esclarecida duma noite
Vestida com as roupas de um cometa
Em que se sente ouvir lá fora o açoite
Dos ventos desordeiros, noite preta
Gelada, crua, débil, silenciada,
Pelo silêncio débil impossível
Pela Lua adoecida amarelada
Beijando ternos lábios do Invisível
Aqui no meio imundo e miserável
Debaixo dum céu lívido opressor
Onde Dezembro o sol é adorável
Onde sucumbe a terra de langor.
Explico-me em verso. Não há quem me explique
Nem equações, matrizes, derivadas
Teorema milagroso que se aplique
Minhas ânsias inúteis, alteradas
Em frente, sigo em frente, abrindo portas
Na terrível escuridão de ser-se humano
Memória, meu valor, nas horas mortas
Para extinguir o rasto ao meu engano
Quem nunca mendigou na porta errada
Amor, qual vendedor de enciclopédias
Sentindo mão jocosa a ser fechada
Bebendo escuridão nos claros dias?
Quem nunca sentiu ódio por ninguém
Deixando entrar um ódio corrosivo
Tomando o leme à barca que não tem
Um forte capitão que grite: “eu vivo!”